Adeus à crônica: sobre o fim silencioso e tímido de um gênero literário
Não, não me
despeço, o leitor não se verá livre desta minha verborragia semanal, não ainda.
Não sou eu que abandono a crônica, é a crônica que vai abandonando o mundo, a
passo lento. Pouco a pouco ela definha, incapaz de seduzir algoritmos, vai
sendo esquecida entre páginas bem mais urgentes, entre novidades eufóricas,
entre ruidosas notícias. Vai calando a irrelevância que lhe é própria entre
tantas palavras imprescindíveis. Acho que é isso: décadas depois de terem
decretado sua crise, eis que a crônica se aproxima do fim, sem desespero nem
cólera nem alarde, na timidez que lhe é característica.
Quanto mais
horas passo lendo crônicas do passado, como fiz numa longa tarde de compromisso
com a ineficácia, sob o sol cálido de um dia supostamente útil, quanto mais
horas passo lendo crônicas do passado, eu dizia, mais percebo que não existe
crônica no presente, que nosso mundo em estado crônico não a comporta. Seu
tempo é outro, há um descompasso de ritmos. Devota da lentidão, apreciadora da
indolência e da preguiça, a crônica já não resiste à velocidade, aos
imperativos da produtividade, seja no trabalho, na diversão ou no vício. A
crônica não sabe existir neste mundo alucinado que já não alucina. Sinto, sinto
muito anunciar algo assim sobre um ente tão querido, mas é isso, a crônica está
quase morta, contam-se os seus dias.
A morte da
crônica é a morte da literatura em sua face cotidiana, da literatura mansa
desprovida de ambições e ganâncias e cobiças. É a morte de um olhar discreto e
franco sobre a vida, agora bem mais pálida, insossa, ignóbil, triste. O fim da
crônica nos deixa quase reféns dos assuntos sérios e dos risos histriônicos,
sem mais meios sorrisos, sem graças furtivas, e sem tampouco a melancolia vaga
das palavras ainda não tão trágicas, só levemente infelizes. A agonia da
crônica nos aparta dos acontecimentos mínimos, nos priva da imaginação e do
devaneio tão bem nutridos pelos assuntos esquálidos. Nos deixa apenas na
presunçosa companhia da ideia, ou, pior ainda, na extravagante presença da
polêmica.
Mesmo esta
crônica, esta pobre e frágil e nauseada crônica, repare como é feita de ideia.
Onde está o homem a vagar pelas ruas e a vislumbrar a improvável cena que tudo
ilumina, onde a mulher em seu mistério, onde o pássaro, o cavalo, o menino?
Repare que já não disponho de personagens, já não disponho de sujeitos apenas entrevistos
e então analisados até o limite, já não procuro examinar a estranheza dos
estranhos e a comunidade dos comuns. Saiba, leitor, leitora, não se trata de
falta de ideias, o problema é o excesso. Existo apenas na austeridade destes
meus pensamentos, nos confins desta mente que não cessa, incessantemente abastecida
de juízos.
Leitor,
leitora, me perdoe por isso. Me perdoe por eu já não lhe oferecer anedota
nenhuma, não lhe providenciar nenhum riso. Me perdoe, mas a culpa é sua. Eu não
sei se lhe perdoo a pressa, a impaciência, a gravidade que você tenta compensar
com uma busca obsessiva por uma distração fácil, um prazer mais imediato, mais
garantido. A crônica já não lhe importa, eu entendo, só não perdoo. Não perdoo
este abandono em que você me deixa, num mar de palavras inúteis que nada dizem,
que só lamentam e se remoem de nostalgia por um tempo que nunca existiu.
Eu sei, o
ressentimento que estou declarando é por um leitor que já não está aí. Restamos
agora só nós, os ociosos, os folgazões, os vagais. Não sei se é nosso fim ou
nosso triunfo definitivo: a entrega dos ociosos ao ócio, dos folgazões à folga,
dos vagais ao vácuo. A crônica se aproxima do fim, em todo caso, e não quero
que você que durou até aqui acabe saindo de mãos vazias. A você e a mim deixo
um pequeno consolo, na forma de uma certeza especulativa. Que tudo aquilo que
definha encontra sua estranha maneira de permanecer. Que todas as formas que
morrem, o soneto, a pintura, o romance, ainda podem ser praticadas com
liberdade e leveza, em absoluta paz, pelos sonhadores e os distraídos.
https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/julian-fuks/2023/08/05/adeus-a-cronica-sobre-o-fim-silencioso-e-timido-de-um-genero-literario.htm
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