27 agosto 2023

CONTEXTO: TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA

Era uma vez uma menina de 15 anos, virgem e criada em Vila Rica, no interior de Minas Gerais. Certo dia, um amigo de seu tio, um português de quase 40 anos, se encantou com sua beleza e seu jeito. Em pouco tempo, o quarentão começou a namorar a jovem e, em sua homenagem, a escrever poemas, declarando seu amor e a reverenciando. O namoro durou seis anos, até que o poeta a pediu em casamento.

            Faltando uma semana para a cerimônia, o destino virou contra os enamorados. A Rainha ordenou a prisão do noivo, alegando que ele estava envolvido em uma conspiração contra o Reino. À jovem coube a solidão da espera pela sentença; ao acusado, restou colocar no papel a dor que sentia por estar longe de sua amada enquanto seu destino era selado.

            É a história de amor entre o escritor Tomás António Gonzaga e Maria Doroteia Joaquina de Seixas. As declarações em forma de poema dariam origem a um dos livros mais aclamados do arcadismo brasileiro, Marília de Dirceu.

            Gonzaga – eternizado no eu-lírico Dirceu – conheceu Maria Doroteia – a Marília dos poemas – em 1783, em uma festa na casa de um tio da moça, um advogado da elite de Vila Rica, atual Ouro Preto. O literato tinha se mudado havia pouco de Portugal para o Brasil, após terminar um curso de Leis, e na festa do amigo se apaixonou pela jovem. Escrever os poemas foi a forma que encontrou de declarar seu amor a ela:

            Os teus olhos espalham luz divina,

            A quem a luz do Sol em vão se atreve:

            Papoula, ou rosa delicada, e fina,

            Te cobre as faces, que são cor de neve.

            Os teus cabelos são uns fios d’Ouro;

Teu lindo corpo bálsamos vapora.

            Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora,

            Para glória de Amor igual tesouro. 

            Eram tempos difíceis na Colônia, época em que manifestações explodiam em várias províncias, clamando pela Independência do Brasil, e a Coroa portuguesa investia em uma caça aos insurgentes. O poeta, que também era autor das Cartas chilenas, textos em que satirizava o governo colonial, acabou sendo um dos presos e investigados sob a acusação de envolvimento com a Inconfidência Mineira. Dos braços de Maria Doroteia, Tomás foi tirado e jogado em uma prisão no Rio de Janeiro. O amor, então, ressurgiu da pena do poeta, e o eu-lírico Dirceu outra vez se declarou à amada:

Nesta cruel masmorra tenebrosa

Ainda vendo estou teus olhos belos,

A testa formosa,

Os dentes nevados,

Os negros cabelos.  

Depois de três anos preso, em 1792 Tomás António Gonzaga ouviu sua sentença: seria exilado em Moçambique por uma década. Talvez ele ainda não soubesse, mas aquela era também a sentença do fim do seu relacionamento com Maria Doroteia. 

Se na vida do casal esse ano marca o ponto final da união, na literatura registra o início da popularização do amor de Dirceu por Marília. Nesse período, os poemas escritos antes de o escritor ser preso foram publicados pela primeira vez em Lisboa. A obra se tornou um sucesso tão grande de público que, em menos de duas décadas, seria reeditada sete vezes. Em território brasileiro, a primeira edição seria lançada em 1810, dois anos após a família real se mudar para o Brasil e a Imprensa Régia ser criada.

            Na arte, à medida que o romantismo do poeta se espalhava, criava-se um mito ao redor dos cônjuges. Na vida do casal, cada um seguia seu próprio caminho. E Gonzaga seguiu rapidamente. Um ano após ser enviado para o país africano, casou-se com outra mulher, com quem teve dois filhos. Em Moçambique, viveu até o resto dos seus dias, em 1810.

            Por aqui, Maria Doroteia parece não ter tido a mesma felicidade para construir uma nova família. Sozinha, continuou em Vila Rica, dedicando-se a tarefas domésticas, leitura de livros, bordados e ir à missa. A historiadora Ana Jardim, comparou o esquecimento e a solidão da musa inspiradora ao esquecimento e à solidão da própria cidade mineira em que ela vivia: “O abandono e o envelhecimento de Maria Doroteia repetem na mulher a sina de uma Vila Rica já quase abandonada. Foram as duas escasseando do ouro, da beleza, do tempo, da juventude, e se preservando do assédio dos olhares externos”. Maria Doroteia morreu em 1853.

            Quase um século após a morte da mineira, o último capítulo do amor de Marília e Dirceu seria escrito. Em meados da década de 1930, o presidente Getúlio Vargas ordenou a repatriação dos restos mortais dos inconfidentes. O corpo de Tomás António Gonzaga foi trazido de volta ao Brasil e levado ao Museu da Inconfidência, em Ouro Preto. Em 1955, uma década depois, o de Doroteia foi retirado do cemitério onde fora sepultado e colocado ao lado dos restos de Gonzaga. Mesmo que postumamente, o mais famoso casal da literatura árcade brasileira pôde, finalmente, ficar junto outra vez.

 


 

ADAPTADO DE: VERRUMO, M. História Bizarra da Literatura Brasileira. São Paulo : Planeta, 2017.

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