Era uma vez uma menina de 15 anos, virgem e
criada em Vila Rica, no interior de Minas Gerais. Certo dia, um amigo de seu
tio, um português de quase 40 anos, se encantou com sua beleza e seu jeito. Em
pouco tempo, o quarentão começou a namorar a jovem e, em sua homenagem, a
escrever poemas, declarando seu amor e a reverenciando. O namoro durou seis
anos, até que o poeta a pediu em casamento.
Faltando uma semana para a cerimônia,
o destino virou contra os enamorados. A Rainha ordenou a prisão do noivo,
alegando que ele estava envolvido em uma conspiração contra o Reino. À jovem
coube a solidão da espera pela sentença; ao acusado, restou colocar no papel a
dor que sentia por estar longe de sua amada enquanto seu destino era selado.
É a história de amor entre o
escritor Tomás António Gonzaga e Maria Doroteia Joaquina de Seixas. As declarações
em forma de poema
dariam origem a um dos livros mais aclamados do arcadismo brasileiro, Marília de Dirceu.
Gonzaga – eternizado no eu-lírico
Dirceu – conheceu Maria Doroteia – a Marília dos poemas – em 1783, em uma festa
na casa de um tio da moça, um advogado da elite de Vila Rica, atual Ouro Preto.
O literato tinha se mudado havia pouco de Portugal para o Brasil, após terminar
um curso de Leis, e na festa do amigo se apaixonou pela jovem. Escrever os
poemas foi a forma que encontrou de declarar seu amor a ela:
Os teus olhos espalham luz divina,
A quem a luz do Sol em vão se
atreve:
Papoula, ou rosa delicada, e fina,
Te cobre as faces, que são cor de
neve.
Os teus cabelos são uns fios d’Ouro;
Teu lindo corpo bálsamos vapora.
Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora,
Para glória de Amor igual tesouro.
Eram tempos difíceis na Colônia,
época em que manifestações explodiam em várias províncias, clamando pela
Independência do Brasil, e a Coroa portuguesa investia em uma caça aos
insurgentes. O poeta, que também era autor das Cartas chilenas, textos em que satirizava o governo colonial,
acabou sendo um dos presos e investigados sob a acusação de envolvimento com a
Inconfidência Mineira. Dos braços de Maria Doroteia, Tomás foi tirado e jogado
em uma prisão no Rio de Janeiro. O amor, então, ressurgiu da pena do poeta, e o
eu-lírico Dirceu outra vez se declarou à amada:
Nesta
cruel masmorra tenebrosa
Ainda
vendo estou teus olhos belos,
A
testa formosa,
Os
dentes nevados,
Os negros cabelos.
Depois de três anos preso, em 1792 Tomás António Gonzaga ouviu sua sentença: seria exilado em Moçambique por uma década. Talvez ele ainda não soubesse, mas aquela era também a sentença do fim do seu relacionamento com Maria Doroteia.
Se na vida do casal esse ano marca o ponto
final da união, na literatura registra o início da popularização do amor de
Dirceu por Marília. Nesse período, os poemas escritos antes de o escritor ser
preso foram publicados pela primeira vez em Lisboa. A obra se tornou um sucesso
tão grande de público que, em menos de duas décadas, seria reeditada sete
vezes. Em território brasileiro, a primeira edição seria lançada em 1810, dois
anos após a família real se mudar para o Brasil e a Imprensa Régia ser criada.
Na arte, à medida que o romantismo
do poeta se espalhava, criava-se um mito ao redor dos cônjuges. Na vida do
casal, cada
um seguia seu próprio caminho. E Gonzaga seguiu rapidamente. Um ano após ser
enviado para o país africano, casou-se com outra mulher, com quem teve dois
filhos. Em Moçambique, viveu até o resto dos seus dias, em 1810.
Por aqui, Maria Doroteia parece não
ter tido a mesma felicidade para construir uma nova família. Sozinha, continuou
em Vila Rica, dedicando-se a tarefas domésticas, leitura de livros, bordados e
ir à missa. A historiadora Ana Jardim, comparou o esquecimento e a solidão da
musa inspiradora ao esquecimento e à solidão da própria cidade mineira em que
ela vivia: “O abandono e o envelhecimento de Maria Doroteia repetem na mulher a
sina de uma Vila Rica já quase abandonada. Foram as duas escasseando do ouro,
da beleza, do tempo, da juventude, e se preservando do assédio dos olhares
externos”. Maria Doroteia morreu em 1853.
Quase um século após a morte da
mineira, o último capítulo do amor de Marília e Dirceu seria escrito. Em meados
da década de 1930, o presidente Getúlio Vargas ordenou a repatriação dos restos
mortais dos inconfidentes. O corpo de Tomás António Gonzaga foi trazido de
volta ao Brasil e levado ao Museu da Inconfidência, em Ouro Preto. Em 1955, uma
década depois, o de Doroteia foi retirado do cemitério onde fora sepultado e
colocado ao lado dos restos de Gonzaga. Mesmo que postumamente, o mais famoso
casal da literatura árcade brasileira pôde, finalmente, ficar junto outra vez.
ADAPTADO DE: VERRUMO, M. História Bizarra da Literatura
Brasileira. São Paulo : Planeta, 2017.
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