A cidade alagoana de Palmeira dos Índios
vivia uma situação dramática em 1927. No ano anterior, o prefeito havia se
desentendido com um fiscal de tributos e, no meio do bate-boca, viu seu
oponente sacar um revólver e disparar em sua direção. Num ambiente de “aqui se
faz, aqui se paga”, um delegado da polícia chegou, pegou uma arma e puxou o
gatilho. O fiscal pagou com a própria vida por ter atirado contra a autoridade
maior da cidade. Aterrorizados, os moradores assistiam em praça pública à morte
do prefeito que haviam elegido e à de seu algoz. Passada a tragédia, quem
assumiu a prefeitura foi o vice-prefeito, que teve de permanecer à frente da
cidade por pouco mais de um ano, até serem concluídas as eleições de 1927.
Em plena República Velha, o processo
eleitoral da pequena cidade no interior do Alagoas era bem diferente do atual e
ditado pelos interesses de grandes fazendeiros. À população, cabia aceitar
decisões e ofertas dos poderosos e fechar os olhos para os trâmites ocultos. Em
1927, a decisão dos poderosos foi apoiar a eleição de um homem que, mais tarde,
se tornaria um grande literato.
O indivíduo “escolhido” pelos fazendeiros
tinha um nome benquisto pelos locais e havia tido êxito como presidente da
Junta Escolar na gestão do prefeito anterior. Quando ainda ocupava o cargo, um
dia chegou sem avisar a uma escola e encontrou professoras sentadas em roda nos
corredores, sem estudantes para ensinar em pleno período letivo. Impressionado,
questionou o que estava acontecendo e descobriu que o regulamento do colégio
não permitia que os alunos fossem estudar sem uniforme e sem calçados. Por se
tratar de uma região muito pobre, as crianças não tinham o que vestir e
acabavam ficando em casa. Chocado com a situação, o então presidente da Junta
Escolar mandou comprar sapatos e uniformes para todos. Deu certo, e não tardou
para que a escola se enchesse outra vez. Seu nome era Graciliano Ramos de
Oliveira.
Sabe-se que, como prefeito, foi um
homem de pulso firme: mergulhou no estudo das gestões anteriores, nas políticas
públicas da cidade, cortou gastos, demitiu funcionários ociosos. Chegou a se
desentender com fazendeiros e empresários que foram prejudicados com as reestruturações.
Em agosto de 1928, Graciliano criou o Código
de Postura Moral, uma cartilha com 82 artigos em que proibiu uma série de
práticas comuns aos moradores da cidade, como comprar remédio sem receita,
dormir e mendigar na rua e criar animais em áreas públicas. Eram medidas
sanitaristas que, por irem contra hábitos muito antigos dos habitantes, desagradaram
boa parte da população inclusive Sebastião Ramos, o pai do prefeito. Sebastião
criava porcos e cabritos em terrenos baldios e foi multado pelo próprio filho,
que foi enfático em sua decisão: “Prefeito não tem pai. Eu posso pagar a sua
multa. Mas terei de apreender seus animais toda vez que o senhor os deixar na
rua”.
Por evitar favoritismo e não
sucumbir aos jogos de interesses tão comuns da época, não tardou para
Graciliano se frustrar com a máquina pública e uma estrutura tão cristalizada e
complexa de ser modificada. Mas o prefeito resistiu, manteve a postura firme e
continuou fazendo o que acreditava ser correto.
Seguiu o estilo determinado até na redação
de relatórios, documentos que chamam a atenção pela riqueza literária. Enquanto
a maioria dos relatórios de gestores públicos são repletos de termos
burocráticos, números e palavras difíceis, os escritos da administração de
Graciliano Ramos contavam histórias, construíam contextos, criavam enredos do
que se passava na cidade. Não eram chatos, mas envolventes. Como político, ele
já mostrava sinais de sua veia literária.
Os textos chamavam a atenção.
Jornalistas, impressionados com as descrições, passaram a publicar os
relatórios, e as linhas a ganhar admiradores dentro e fora da cidade alagoana.
Em 1930, exausto com o clientelismo, prejudicado com o baixo salário público,
vendo seus negócios minguarem com a Crise de 1929 e sua família enfrentar uma
situação financeira delicada, Graciliano Ramos renunciou ao cargo de prefeito.
Precisava colocar dinheiro dentro da própria casa. O vice concluiu o mandato de
Graciliano, que encerrava sua carreira política.
Contudo, tinha início sua carreira
literária. Um de seus relatórios caiu nas mãos de um editor, que, impressionado
com o talento do ex-gestor público, o contatou. Em 1933, seria publicado o
primeiro romance de Graciliano Ramos, Caetés,
e o alagoano deixaria de vez o título de ex-prefeito para ocupar o cargo de “escritor”.
VERRUMO, M. História Bizarra da Literatura
Brasileira. São Paulo : Planeta, 2017.
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