12 DE DEZEMBRO DE 1917
SÃO
PAULO, BRASIL.
A jovem pintora brasileira Anita Malfatti, de
apenas 28 anos, abriu as portas de um salão de arte em São Paulo, para
apresentar 53 novos quadros, entre paisagens, figuras e gravuras. As obras
apresentavam técnicas plásticas modernas, as quais a artista conhecera na Independent School of Art, em Nova York,
e na academia Lewin-Funcke, na
Alemanha. Em um período em que a maioria dos artistas brasileiros iam à Itália
ou à França estudar, a influência estadunidense e alemã fazia com que quadros
como O homem amarelo e A estudante russa denunciassem
procedimentos de intensidade inédita, como a separação difusa das figuras
retratadas e da paisagem, a pincelada livre e não tão planejada, a liberdade
para compor as cores, as luzes.
Como frequentemente acontece com o que é
novo, as telas de Anita dividiram a opinião pública. O jovem escritor Mário de
Andrade identificou nas obras a chegada de algo novo ao Brasil. “Não posso
falar pelos meus companheiros de então, mas eu, pessoalmente, devo a revelação
do novo e a convicção da revolta a ela e à força de seus quadros”, escreveu fisgado
pelo movimento modernista graças aos quadros da artista brasileira. A admiração
positiva e surpresa também invadiu o pintor Di Cavalcanti e o poeta Mário da
Silva Brito.
O trabalho, porém, não agradou o escritor Monteiro Lobato, que resolveu escrever um artigo classificando-o como “arte anormal” e, embora reconhecendo o talento genuíno de Malfatti, acusando-a de ver “anormalmente” o mundo à sua volta.
Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que veem as coisas e em consequência fazem arte pura, guardados os eternos ritmos da vida, e adotados, para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres. [...] A outra espécie é formada dos que veem anormalmente a natureza e a interpretam à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. [...] Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.
A crítica caiu como uma bomba no círculo
artístico. Os admiradores do trabalho de Malfatti, sobretudo os que viam nele a
renovação da arte brasileira, saíram em sua defesa na imprensa, como Mário e
Oswald de Andrade. Não adiantou muito. O estrago já estava feito. O julgamento
de um formador de opinião tão respeitado como Lobato fez com que algumas das
telas vendidas na exposição fossem devolvidas e mecenas mais tradicionais
olhassem para a pintora com olhares tortos. Tao jovem, com apenas 28 anos, e
com poucas oportunidades de expor e explorar seu potencial criativo, Anita
Malfatti parecia viver o fim de sua carreira.
Mas este episódio resultou em algo
positivo, pois o pioneirismo de Anita instigou artistas a se juntarem para
renovar a arte brasileira, romper com a tradição e criar algo genuinamente
nacional: pintores, escritores, músicos, escultores e arquitetos sintonizados
com a modernidade, as novas tecnologias e os movimentos de vanguarda, dispostos
a criar uma arte que não fosse apenas cópia do que vinha da Europa, mas que
transpirasse brasilidade. Havia sido plantada a semente do modernismo
brasileiro, que floresceria cinco anos mais tarde, na Semana de Arte de 1922.
A Semana de Arte Moderna, não durou
uma semana, mas apenas três dias (13, 15 e 17 de fevereiro). Foi planejada por
artistas que queriam romper com a tradição e renovar as expressões culturais
brasileiras. O ano não foi escolhido ao acaso, afinal, 1922 marcava a
comemoração dos cem anos da Independência do Brasil. Se em 1822 0 Brasil
conquistara a independência política de Portugal, cem anos depois os
modernistas reivindicavam a nossa independência cultural.
A programação foi bem organizada e
os eventos, sediados no Theatro Municipal de São Paulo. Cada dia foi reservado
a uma expressão artística. Na segunda noite, 15 de fevereiro, foi a vez da
literatura, o que fez os ânimos do público fervilharem. Menotti del Picchia abriu
a cerimónia com uma palestra sobre as letras modernas, ilustrada com poemas de
Oswald e Mário de Andrade. Durante o intervalo, Mário recitou poemas no saguão
do Municipal. Depois de o público já ter ouvido diferentes provocações, Ronald
de Carvalho subiu ao palco para ler o poema Os
sapos, de Manuel Bandeira, que estava adoentado e não pôde comparecer. Os
versos – uma grande provocação aos poetas parnasianos, que davam mais valor à
forma do que ao conteúdo – não tinham métrica, anunciavam o manifesto
da poesia moderna, estilo com o qual o público não estava acostumado. Era um
tapa na cara da tradição literária e a reação foi imediata. A plateia se
levantou e, na mesma hora, se dividiu entre vaias e aplausos. Há quem defenda
que as vaias foram uma grande estratégia para os organizadores chamarem a
atenção: Oswald de Andrade teria pedido a estudantes que começassem a tumultuar
durante a leitura para contaminar os outros presentes e incentivá-los a se
manifestar. Oswald queria que o evento chamasse a atenção da sociedade.
Combinados ou espontâneos, os aplausos e as vaias colocaram o evento sob os
holofotes.
Planejado e realizado para ser um
rompimento com a tradição artística, o evento apresentou uma série de
incoerências. A primeira delas foram justamente os investidores: empresários e
fazendeiros paulistas que consumiam a arte tradicional. Sim, os mecenas que
abriram a carteira e estiveram na plateia dos recitais, óperas e exposições
eram os mesmos oligarcas que investiam em artistas que reproduziam a cultura
europeia. Mas eles tinham um interesse bem definido. Um evento como esse
colocava a arte produzida em São Paulo sob os holofotes. Em um momento em que o
Rio de Janeiro, então capital federal, era o grande polo cultural do Brasil e
os artistas cariocas as nossas grandes estrelas, a Semana de 22 era a
oportunidade de começar a mudar esse cenário e fazer com que os brasileiros
olhassem para o que era criado na capital paulista.
Da parte dos organizadores, daria para não se render a esses grandes investidores? A resposta desemboca na segunda contradição: talvez sim, se a estrutura da Semana não fosse idêntica à dos eventos tradicionais. O que não aconteceu. A Semana de 22 foi realizada no Theatro Municipal de São PauIo, principal espaço paulista dedicado à apresentação do convencional. Por que anunciar a renovação justamente no palco onde a arte convencional sempre foi exposta? Talvez para causar mais barulho, para chocar mais, para ser vista por mais olhares influentes. O fato é que não sair da caixa (ou melhor, do teatro) fez com que boa parte da plateia do evento fosse justamente a tradicional.
Ao contrário do que aparece hoje em livros de
literatura, a Semana de 22 não foi um marco na época em que foi realizada. Foi
mais um evento do Theatro Municipal de São PauIo, aliás, um evento não muito
bem recebido pelo público e pela crítica especializada.
O reconhecimento só veio com o
tempo. Com o passar das décadas, a liberdade defendida por aqueles jovens que
pareciam loucos e a busca por uma arte que refletisse uma estética brasileira
começaram a ser respeitadas e valorizadas. O que pareceu sem importância à
primeira vista foi provando-se, a longo prazo, um divisor na trajetória da
literatura brasileira.
A Semana de 22 foi como a queda de
uma pedra em um lago: num primeiro momento, rompe a barreira da água e causa
uma ondulação pontual; mas, com o passar do tempo, essa ondulação se espalha e
movimenta todo o lago à sua volta.
O homem amarelo e A estudante russa, de Anita Malfatti |
[TRECHO
DO POEMA Os Sapos]
Enfunando
os papos,
Saem
da penumbra,
Aos
pulos, os sapos.
A
luz os deslumbra.
Em
ronco que aterra,
Berra
o sapo-boi:
–
“Meu pai foi à guerra!”
–
“Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”.
O
sapo-tanoeiro,
Parnasiano
aguado,
Diz:
– “Meu cancioneiro
É
bem martelado.
Vede
como primo
Em
comer os hiatos!
Que
arte! E nunca rimo
Os
termos cognatos.
ADAPTADO DE: VERRUMO, M. História Bizarra da
Literatura Brasileira. São Paulo : Planeta, 2017.
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