27 agosto 2023

CONTEXTO: ALUÍSIO DE AZEVEDO E "O CORTIÇO"

O Rio de Janeiro, capital federal na virada do século XX, não foi apenas uma cidade que abriu as portas para a Europa e recebeu novos costumes e tecnologias inovadoras. Foi também um espaço marcado pela desigualdade socioeconômica. 

            Um dos romances que escancara a miséria carioca da época é o livro naturalista O cortiço, de Aluísio Azevedo. Publicado em 1890, a obra é um retrato de um ambiente habitado por seres descritos quase como animais, os quais, ao longo da narrativa, têm seus comportamentos avaliados pelo escritor a partir de teorias científicas do período, como o darwinismo social.¹

Nesse caso, a ficção se inspirou na realidade. Havia muitas habitações de imigrantes, escravos recém-libertos, pequenos comerciantes, gente que não nasceu endinheirada e sobrevivia sem um tostão no bolso. Chamadas de “classes perigosas’ pelos mais ricos, esses indivíduos tinham ao seu dispor poucos metros quadrados e quase nenhuma infraestrutura para viver com dignidade. Sem banheiro, torneira e o mínimo adequado para viver, moravam em locais nos quais corriam o risco de se contaminar com doenças tropicais, e não eram poucos os adoentados.

As doenças, a pobreza e o medo que os ricos tinham da violência desses cidadãos começaram a preocupar os agentes de segurança pública do final do século XIX. O cortiço que inspirou Aluísio Azevedo, o Cabeça de Porco, era o que mais causava temor: maior cortiço do Centro do Rio de Janeiro, chegou a abrigar 4 mil pessoas. Não demorou para ser alvo de um processo de higienização. No dia 26 de janeiro de 1893, o prefeito Cândido Barata Ribeiro, três dias após enviar uma carta ao proprietário do local com ordem de desocupação imediata das casas, mandou um grupo de policiais destruir cada uma das residências do agrupamento e não deixar nada em pé.

            De acordo com o historiador Sidney Chalhoub, a ação dos agentes públicos começou por volta das 18h, quando tropas do governo e curiosos começaram a se aglomerar na frente do número 154 da rua Barão de São Félix, endereço do Cabeça de Porco. A fachada do cortiço era simbólica: em cima de uma arcada que remetia aos arcos greco-romanos, havia uma grande estátua da cabeça de um porco, para ninguém ter dúvida do que funcionava naquele local.

            O portão de entrada dava para um corredor principal, que ficava entre duas grandes alas com centenas de casinhas. Entre um barraco e outro, às vezes surgia uma viela, que dava para os fundos do cortiço, onde mais gente morava.

            Às 19h30, a operação teria sido deflagrada: tropas invadiram o cortiço, fechando a entrada principal. Um grupo subiu corredor adentro e se posicionou no lado oposto à entrada, proibindo que os moradores saíssem pelos fundos com seus pertences. A ordem era clara: ninguém iria entrar nem sair, e tudo o que estivesse ali seria destruído.

            A demolição começou pelas casas da ala à esquerda, fechadas há um ano por ordem da Inspetoria Geral de Higiene, que considerou o local potencialmente infeccioso aos moradores. O surpreendente, foi que, enquanto os policiais destelhavam as casas onde era proibido viver, mulheres saíam com crianças no colo e arrastavam colchões. Derrubadas todas as casas à esquerda, o batalhão partiu para a ala oposta, numa cena ainda mais dramática, já que ainda havia muitos moradores ali. Entre os escombros que caíam, não foram poucos os que tentaram salvar um móvel, uma recordação familiar, um documento. Muito se perdeu. Na manhã do dia 27, o antigo Cabeça de Porco amanheceu destruído, os destroços espalhando poeira pela região central da cidade.

            A destruição do cortiço que inspirou Aluísio Azevedo foi apenas um dos primeiros episódios da campanha higienista que tomou as ruas do Rio de Janeiro na virada do século XX. Nos anos seguintes, o terror continuou. Tomou posse o prefeito Pereira Passos, que, assim como o Presidente da República Campos Sales, desejava fazer com que a capital federal se parecesse com a francesa. A dupla investiu na demolição de outros cortiços do Centro para, no lugar, construir moradias com arquitetura mais bem planejada. O que fazer com as pessoas que ficaram sem-teto parecia ser uma preocupação secundária, menos importante do que o desejo de embelezar a capital.

            Assim como os moradores do Cabeça de Porco, muitos outros miseráveis perderam o pouco que tinham. Sem moradia e proibidos de se instalarem no Centro, dirigiram-se aos morros da cidade, onde ninguém os impedia de ficar e podiam erguer suas barracas. Morriam os cortiços, nasciam as favelas. A miséria e a violência retratadas por Aluísio Azevedo em O Cortiço começavam a se transformar na miséria e na violência. Tais circunstâncias saíam do Centro para a periferia, onde seriam menos vistas pelos olhos de quem desejava respirar ares europeus em pleno Brasil.

 

 

 

 

¹ O darwinismo social é a adaptação da teoria da seleção natural, de Charles Darwin, à sociedade. Segundo essa teoria, algumas pessoas têm uma posição privilegiada por serem biologicamente superiores, terem mais inteligência e habilidades sociais.




ADAPTADO DE: VERRUMO, M. História Bizarra da Literatura Brasileira. São Paulo : Planeta, 2017. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

MATÉRIA RELACIONADA AO LIVRO "CEM ANOS DE SOLIDÃO"

  Massacre das Bananeiras: conheça história real que inspirou “Cem Anos de Solidão ” O governo colombiano, para proteger uma empresa dos E...