O Rio de Janeiro, capital federal na virada
do século XX, não foi apenas uma cidade que abriu as portas para a Europa e
recebeu novos costumes e tecnologias inovadoras. Foi também um espaço marcado
pela desigualdade socioeconômica.
Um dos romances que escancara a
miséria carioca da época é o livro naturalista O cortiço, de Aluísio Azevedo. Publicado em 1890, a obra é um
retrato de um ambiente habitado por seres descritos quase como animais, os
quais, ao longo da narrativa, têm seus comportamentos avaliados pelo escritor a
partir de teorias científicas do período, como o darwinismo social.¹
Nesse caso, a ficção se inspirou na
realidade. Havia muitas habitações de imigrantes, escravos recém-libertos,
pequenos comerciantes, gente que não nasceu endinheirada e sobrevivia sem um
tostão no bolso. Chamadas de “classes perigosas’ pelos mais ricos, esses
indivíduos tinham ao seu dispor poucos metros quadrados e quase nenhuma
infraestrutura para viver com dignidade. Sem banheiro, torneira e o mínimo
adequado para viver, moravam em locais nos quais corriam o risco de se
contaminar com doenças tropicais, e não eram poucos os adoentados.
As doenças, a pobreza e o medo que os ricos
tinham da violência desses cidadãos começaram a preocupar os agentes de
segurança pública do final do século XIX. O cortiço que inspirou Aluísio
Azevedo, o Cabeça de Porco, era o que mais causava temor: maior cortiço do
Centro do Rio de Janeiro, chegou a abrigar 4 mil pessoas. Não demorou para ser
alvo de um processo de higienização. No dia 26 de janeiro de 1893, o prefeito
Cândido Barata Ribeiro, três dias após enviar uma carta ao proprietário do
local com ordem de desocupação imediata das casas, mandou um grupo de policiais
destruir cada uma das residências do agrupamento e não deixar nada em pé.
De acordo com o historiador Sidney
Chalhoub, a ação dos agentes públicos começou por volta das 18h, quando tropas
do governo e curiosos começaram a se aglomerar na frente do número 154 da rua
Barão de São Félix, endereço do Cabeça de Porco. A fachada do cortiço era
simbólica: em cima de uma arcada que remetia aos arcos greco-romanos, havia uma
grande estátua da cabeça de um porco, para ninguém ter dúvida do que funcionava
naquele local.
O portão de entrada dava para um
corredor principal, que ficava entre duas grandes alas com centenas de casinhas.
Entre um barraco e outro, às vezes surgia uma viela, que dava para os fundos do
cortiço, onde mais gente morava.
Às 19h30, a operação teria sido
deflagrada: tropas invadiram o cortiço, fechando a entrada principal. Um grupo
subiu corredor adentro e se posicionou no lado oposto à entrada, proibindo que
os moradores saíssem pelos fundos com seus pertences. A ordem era clara:
ninguém iria entrar nem sair, e tudo o que estivesse ali seria destruído.
A demolição começou pelas casas da
ala à esquerda, fechadas há um ano por ordem da Inspetoria Geral de Higiene,
que considerou o local potencialmente infeccioso aos moradores. O
surpreendente, foi que, enquanto os policiais destelhavam as casas onde era
proibido viver, mulheres saíam com crianças no colo e arrastavam colchões.
Derrubadas todas as casas à esquerda, o batalhão partiu para a ala oposta, numa
cena ainda mais dramática, já que ainda havia muitos moradores ali. Entre os
escombros que caíam, não foram poucos os que tentaram salvar um móvel, uma
recordação familiar, um documento. Muito se perdeu. Na manhã do dia 27, o
antigo Cabeça de Porco amanheceu destruído, os destroços espalhando poeira pela
região central da cidade.
A destruição do cortiço que inspirou
Aluísio Azevedo foi apenas um dos primeiros episódios da campanha higienista que
tomou as ruas do Rio de Janeiro na virada do século XX. Nos anos seguintes, o
terror continuou. Tomou posse o prefeito Pereira Passos, que, assim como o
Presidente da República Campos Sales, desejava fazer com que a capital federal
se parecesse com a francesa. A dupla investiu na demolição de outros cortiços
do Centro para, no lugar, construir moradias com arquitetura mais bem
planejada. O que fazer com as pessoas que ficaram sem-teto parecia ser uma
preocupação secundária, menos importante do que o desejo de embelezar a
capital.
Assim como os moradores do Cabeça de
Porco, muitos outros miseráveis perderam o pouco que tinham. Sem moradia e
proibidos de se instalarem no Centro, dirigiram-se aos morros da cidade, onde
ninguém os impedia de ficar e podiam erguer suas barracas. Morriam os cortiços,
nasciam as favelas. A miséria e a violência retratadas por Aluísio Azevedo em O Cortiço começavam a se transformar na
miséria e na violência. Tais circunstâncias saíam do Centro para a periferia,
onde seriam menos vistas pelos olhos de quem desejava respirar ares europeus em
pleno Brasil.
¹
O darwinismo social é a adaptação da teoria da seleção natural, de Charles
Darwin, à sociedade. Segundo essa teoria, algumas pessoas têm uma posição
privilegiada por serem biologicamente superiores, terem mais inteligência e
habilidades sociais.
ADAPTADO DE: VERRUMO, M. História Bizarra da Literatura Brasileira. São Paulo : Planeta, 2017.
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