06 julho 2022

POR QUE O SOL ANDA TÃO DEVAGAR?

 

Contam os velhos sábios Karajá que, no início dos tempos, não havia sol, lua ou estrelas para trazer claridade. Tudo era muito escuro. Por causa disso, os Karajá precisavam manter um pequeno braseiro aceso dentro de casa. Mas isso era muito trabalhoso, pois exigia que os homens saíssem para a mata atrás de lenha. Como tudo era escuro e frio, todo mundo sentia uma grande indisposição para ir até lá. Além da preguiça, eles também sentiam muito medo de permanecerem fora de sua hetó, pois os perigos eram muito grandes.

Nesta época, dizem os velhos, a preguiça tomava de todo mundo, mesmo do grande herói do povo Karajá. Este herói, de nome Cananxiuê, morava na casa do pai de sua esposa, como é o costume desse povo. Por isso, sempre ouvia o velho homem lhe dizer:

- Oh, meu genro. você precisa encontrar a luz e trazê-la para todos nós. Você é um herói e como herói tem que resolver este problema que fará muito bem para os Karajá.

- Tá bom meu sogro, um dia eu vou!

Mas o herói não queria saber de levantar-se de sua rede. Como todos os homens do lugar, preferia ficar ali a enfrentar a noite escura e fria da mata. Nem lenha ele queria ir buscar, deixando a tarefa para sua esposa.

Um dia o velho sogro estava muito irritado com Cananxiuê e foi ele mesmo buscar lenha na mata. Como já estava bastante idoso, não enxergava mais direito, e acabou caindo e se machucando todo. Lá do mato, socorrido por outras pessoas, o homem velho berrou com o genro:

- Ô Cananxiuê, você tem que dar um jeito nessa escuridão! Já não aguento mais essa vida!

Não adiantou nada. O herói preguiçoso continuou deitado, cheio de preguiça. Foi então que os animais e a esposa de Cananxiuê se juntaram ao sogro, e começaram a reclamar.

Irritado com tanta gente pegando no seu pé, Cananxiuê decidiu sair pelo mundo à procura da luz do sol. Como estava irritado, decidiu que iria sozinho e nada levaria consigo.

Vendo que o herói nada levava, todo mundo na aldeia ficou desconfiado. Todos achavam que, andando desse jeito, sem levar arma alguma, aquele moço não conseguiria trazer o sol consigo.

Até os animais da floresta começaram a dizer a Cananxiuê:

- Como um homem sozinho pode vencer Theuú? O sol é grande e forte e mãos vazias não irão aguentá-lo.

- Randô é esperta e cheia de fases. Como poderá vencê-la?

- Thainá é valente e ligeira. Ela pisca e se esconde. Como irá encontrá-la?

Cananxiuê nada respondia. Continuava quieto apenas fazendo planos em seu pensamento:

- Se não posso flechar o sol, laçar a lua, amarrar as estrelas, para que usar armas? A minha arma tem que ser a esperteza.

E assim continuou sua jornada. Pelo caminho ia perguntando para todos que encontrava qual seria o paradeiro do sol, da lua e das estrelas. Ninguém sabia direito, até que num dia encontrou alguém que sabia onde eles viviam.

- O sol, a lua e as estrelas estão lá em cima. Eles estão muito bem guardados pelo Ranranresá, o urubu-rei.

- Então, se o urubu-rei que é dono do sol, da lua e das estrelas, é ele que tenho que vencer!

E assim foi, dizem os velhos Karajás.

Canaxiuê bolou um plano para vencer o Ranranserá. Ao chegar num lugar bonito, onde havia uma praia de rio, lugar largo e que desse chance para uma fuga, resolveu que ali seria o espaço ideal para travar sua batalha com o urubu-rei.

Ele deitou-se no chão e avisou a todos os animais que o seguiam: morri!

Para testar se ele estava mesmo morto, as moscas vieram e andaram por cima do corpo estendido no chão. Fizeram barulho perto do ouvido do herói morto e não conseguiram que ele movesse um único músculo. Disseram então:

- Ele está morto. Ele morreu mesmo.

Em seguida veio um grupo de urubus e voaram em círculo sobre o cadáver. Desconfiados, não quiseram arriscar descer onde ele estava. Tempos depois, alguns vieram e bicaram a barriga de Cananxiuê, mas ele não se mexeu. Então disseram entre si:

- Ele está morto. Pode avisar o rei.

Ranranserá sobrevoou o herói. Estava desconfiado, mas, acreditando nas palavras de seus conselheiros, pousou bem no peito do cadáver que, rápido como um raio, agarrou as pernas do urubu-rei e tornou-o seu prisioneiro.

Ao notar que o herói havia conseguido aprisionar o dono do sol, os animais começaram a caçoar do pássaro:

- Este urubu não é de nada. Deixou aprisionar-se de uma forma tão infantil.

- Não pode ser rei alguém que se torna presa de um Karajá!

- Como pode ser dono do sol, da lua e das estrelas alguém tão fácil de agarrar.

Os animais sabiam que agindo daquela forma iriam provocar a ira do urubu-rei e que acabariam conseguindo dele o que queriam.

Passado algum tempo, e já não mais aguentando tamanha gozação, Ranranresá chamou Canaxiuê e lhe propôs satisfazer qualquer vontade do moço por sua liberdade.

- Liberte-me e eu lhe darei o que pedir.

- Irá me dar qualquer coisa?

- Tudo o que quiser, desde que me liberte.

- Você me dá sua palavra, urubu-rei?

- Dou minha palavra.

O herói libertou o urubu-rei, que imediatamente tomou o rumo do céu. Aliviado por estar livre das correntes, a ave voltou ao jovem:

- O que você quer em troca de minha liberdade?

- Quero a luz das estrelas!

O Urubu sumiu, voltando em seguida com a luz das estrelas. Isto, no entanto, não agradou a todos. Queriam uma luz mais forte que a das estrelas.

- Quero que me traga a luz da lua!

Urubu-rei partiu e regressou trazendo apenas a luz da lua consigo. No entanto, essa luz ainda não era suficiente.

- Quero Theuú, o sol. Somente ele tem a luz e o calor que os Karajás precisam.

Urubu-rei foi e voltou com o sol. O sol brilhava forte, e quase queimou tudo em seu caminho. Mas, o Urubu-rei estava muito chateado com os Karajás, e pediu ao sol que passasse bem rápido, sem dar tempo para que ninguém o aproveitasse. E mais uma vez os Karajás foram reclamar com Cananxiuê.

O herói tentou pedir para que o Urubu-rei falasse com o sol. No entanto, o bicho estava com tanta raiva de Cananxiuê que disse a ele que ele mesmo falasse com o sol.

Canaxiuê bolou então um plano para conseguir fazer com que o sol passasse mais devagar. Ficou esperando no topo de uma grande palmeira. Quando o sol estava bem perto da árvore saltou para cima do sol e agarrou sua cabeleira. Ela estava muito quente! Por isso Canaxiuê teve de escorregar até seu pescoço, que ainda estava muito quente, fazendo com que ele escorregasse para sua barriga, e depois para sua cintura, até que chegasse em sua barriga da perna, onde o calor era suportável.

Quando chegou na batata da perna do sol, Cananxiuê se agarrou bem firme, fazendo com que o sol passasse bem devagar, e que os Karajás conseguissem realizar todas as suas tarefas diárias: caçar, pescar, pegar lenha na mata, trançar suas redes, comer… Sem precisar correr com medo do fim do dia.

E quando o sol vai embora e a humanidade fica entregue à noite, os Karajás recebem com alegria a luz de Randô, e podem contar com Thainá mesmo nas noites mais escuras.

 

Glossário

Karajá: Povo que habita o Estado do Tocantins. Sua família linguística pertence ao grande tronco Macro-Jê e incorpora outros grupos indígenas como os Javaé e Xambioá.

Cananxiuê - Herói cultural Karajá. Nesta história, o herói é quem tira o seu povo da escuridão da noite.

Theuú – Sol

Randô – Lua

Thainá - Estrela vespertina

Ranranresá - Urubu-rei. Ave grande, formosa e rara. É um urubu de penas cor do café com leite, arminho no pescoço e pupila branca como se fosse de porcelana. Seu nome foi dado por causa da coroa amarela e vermelha que traz na cabeça como um cristal.

 

Conto adaptado do livro MUNDURUKU, Daniel. Contos indígenas brasileiros, São Paulo: Global, 2005.








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