Contam os velhos sábios Karajá que, no início dos
tempos, não havia sol, lua ou estrelas para trazer claridade. Tudo era muito
escuro. Por causa disso, os Karajá precisavam manter um pequeno braseiro aceso
dentro de casa. Mas isso era muito trabalhoso, pois exigia que os homens
saíssem para a mata atrás de lenha. Como tudo era escuro e frio, todo mundo
sentia uma grande indisposição para ir até lá. Além da preguiça, eles também
sentiam muito medo de permanecerem fora de sua hetó, pois os perigos eram muito
grandes.
Nesta época, dizem os velhos, a preguiça
tomava de todo mundo, mesmo do grande herói do povo Karajá. Este herói, de nome
Cananxiuê, morava
na casa do pai de sua esposa, como é o costume desse povo. Por isso, sempre
ouvia o velho homem lhe dizer:
- Oh, meu genro. você precisa encontrar a luz
e trazê-la para todos nós. Você é um herói e como herói tem que resolver este
problema que fará muito bem para os Karajá.
- Tá bom meu sogro, um dia eu vou!
Mas o herói não queria saber de levantar-se
de sua rede. Como todos os homens do lugar, preferia ficar ali a enfrentar a
noite escura e fria da mata. Nem lenha ele queria ir buscar, deixando a tarefa
para sua esposa.
Um dia o velho sogro estava muito irritado
com Cananxiuê e foi ele mesmo buscar lenha na mata. Como já estava bastante
idoso, não enxergava mais direito, e acabou caindo e se machucando todo. Lá do
mato, socorrido por outras pessoas, o homem velho berrou com o genro:
- Ô Cananxiuê, você tem que dar um jeito
nessa escuridão! Já não aguento mais essa vida!
Não adiantou nada. O herói preguiçoso
continuou deitado, cheio de preguiça. Foi então que os animais e a esposa de
Cananxiuê se juntaram ao sogro, e começaram a reclamar.
Irritado com tanta gente pegando no seu pé,
Cananxiuê decidiu sair pelo mundo à procura da luz do sol. Como estava
irritado, decidiu que iria sozinho e nada levaria consigo.
Vendo que o herói nada levava, todo mundo na
aldeia ficou desconfiado. Todos achavam que, andando desse jeito, sem levar
arma alguma, aquele moço não conseguiria trazer o sol consigo.
Até os animais da floresta começaram a dizer
a Cananxiuê:
- Como um homem sozinho pode vencer Theuú? O sol é grande e
forte e mãos vazias não irão aguentá-lo.
- Randô é esperta e cheia de fases. Como poderá vencê-la?
- Thainá é valente e ligeira. Ela pisca e se esconde. Como irá
encontrá-la?
Cananxiuê nada respondia. Continuava quieto
apenas fazendo planos em seu pensamento:
- Se não posso flechar o sol, laçar a lua,
amarrar as estrelas, para que usar armas? A minha arma tem que ser a esperteza.
E assim continuou sua jornada. Pelo caminho
ia perguntando para todos que encontrava qual seria o paradeiro do sol, da lua
e das estrelas. Ninguém sabia direito, até que num dia encontrou alguém que
sabia onde eles viviam.
- O sol, a lua e as estrelas estão lá em
cima. Eles estão muito bem guardados pelo Ranranresá, o urubu-rei.
- Então, se o urubu-rei que é dono do sol, da
lua e das estrelas, é ele que tenho que vencer!
E assim foi, dizem os velhos Karajás.
Canaxiuê bolou um plano para vencer o
Ranranserá. Ao chegar num lugar bonito, onde havia uma praia de rio, lugar
largo e que desse chance para uma fuga, resolveu que ali seria o espaço ideal
para travar sua batalha com o urubu-rei.
Ele deitou-se no chão e avisou a todos os
animais que o seguiam: morri!
Para testar se ele estava mesmo morto, as
moscas vieram e andaram por cima do corpo estendido no chão. Fizeram barulho
perto do ouvido do herói morto e não conseguiram que ele movesse um único
músculo. Disseram então:
- Ele está morto. Ele morreu mesmo.
Em seguida veio um grupo de urubus e voaram
em círculo sobre o cadáver. Desconfiados, não quiseram arriscar descer onde ele
estava. Tempos depois, alguns vieram e bicaram a barriga de Cananxiuê, mas ele
não se mexeu. Então disseram entre si:
- Ele está morto. Pode avisar o rei.
Ranranserá sobrevoou o herói. Estava
desconfiado, mas, acreditando nas palavras de seus conselheiros, pousou bem no
peito do cadáver que, rápido como um raio, agarrou as pernas do urubu-rei e
tornou-o seu prisioneiro.
Ao notar que o herói havia conseguido
aprisionar o dono do sol, os animais começaram a caçoar do pássaro:
- Este urubu não é de nada. Deixou
aprisionar-se de uma forma tão infantil.
- Não pode ser rei alguém que se torna presa
de um Karajá!
- Como pode ser dono do sol, da lua e das
estrelas alguém tão fácil de agarrar.
Os animais sabiam que agindo daquela forma
iriam provocar a ira do urubu-rei e que acabariam conseguindo dele o que
queriam.
Passado algum tempo, e já não mais aguentando
tamanha gozação, Ranranresá chamou Canaxiuê e lhe propôs satisfazer qualquer
vontade do moço por sua liberdade.
- Liberte-me e eu lhe darei o que pedir.
- Irá me dar qualquer coisa?
- Tudo o que quiser, desde que me liberte.
- Você me dá sua palavra, urubu-rei?
- Dou minha palavra.
O herói libertou o urubu-rei, que
imediatamente tomou o rumo do céu. Aliviado por estar livre das correntes, a
ave voltou ao jovem:
- O que você quer em troca de minha
liberdade?
- Quero a luz das estrelas!
O Urubu sumiu, voltando em seguida com a luz
das estrelas. Isto, no entanto, não agradou a todos. Queriam uma luz mais forte
que a das estrelas.
- Quero que me traga a luz da lua!
Urubu-rei partiu e regressou trazendo apenas
a luz da lua consigo. No entanto, essa luz ainda não era suficiente.
- Quero Theuú, o sol. Somente ele tem a luz e
o calor que os Karajás precisam.
Urubu-rei foi e voltou com o sol. O sol
brilhava forte, e quase queimou tudo em seu caminho. Mas, o Urubu-rei estava
muito chateado com os Karajás, e pediu ao sol que passasse bem rápido, sem dar
tempo para que ninguém o aproveitasse. E mais uma vez os Karajás foram reclamar
com Cananxiuê.
O herói tentou pedir para que o Urubu-rei
falasse com o sol. No entanto, o bicho estava com tanta raiva de Cananxiuê que
disse a ele que ele mesmo falasse com o sol.
Canaxiuê bolou então um plano para conseguir
fazer com que o sol passasse mais devagar. Ficou esperando no topo de uma
grande palmeira. Quando o sol estava bem perto da árvore saltou para cima do
sol e agarrou sua cabeleira. Ela estava muito quente! Por isso Canaxiuê teve de
escorregar até seu pescoço, que ainda estava muito quente, fazendo com que ele
escorregasse para sua barriga, e depois para sua cintura, até que chegasse em
sua barriga da perna, onde o calor era suportável.
Quando chegou na batata da perna do sol,
Cananxiuê se agarrou bem firme, fazendo com que o sol passasse bem devagar, e
que os Karajás conseguissem realizar todas as suas tarefas diárias: caçar,
pescar, pegar lenha na mata, trançar suas redes, comer… Sem precisar correr com
medo do fim do dia.
E quando o sol vai embora e a humanidade fica
entregue à noite, os Karajás recebem com alegria a luz de Randô, e podem contar
com Thainá mesmo nas noites mais escuras.
Glossário
Karajá:
Povo que habita o Estado do Tocantins. Sua família linguística pertence ao
grande tronco Macro-Jê e incorpora outros grupos indígenas como os Javaé e
Xambioá.
Cananxiuê
- Herói cultural Karajá. Nesta história, o herói é quem tira o seu povo da
escuridão da noite.
Theuú
– Sol
Randô
– Lua
Thainá
- Estrela vespertina
Ranranresá
- Urubu-rei. Ave grande, formosa e rara. É um urubu de penas cor do café com
leite, arminho no pescoço e pupila branca como se fosse de porcelana. Seu nome
foi dado por causa da coroa amarela e vermelha que traz na cabeça como um
cristal.
Conto adaptado do livro MUNDURUKU, Daniel. Contos indígenas brasileiros, São Paulo:
Global, 2005.
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