por CATARINA SILVA
08/09/2021
A “geladeira”, o
“trollar” ou o “policial” estão a entrar a toda a velocidade na fala das
crianças à boleia de youtubers brasileiros de conteúdos infantis. As modas da
oralidade sempre existiram e a influência do país irmão já cá anda há umas
décadas. Fomos saber se há motivos para alarme.
Os olhos arregalados e expressivos, a fala
despachada e a brincadeira é num mar de bonecos vestidos de t-shirt e boné
azul, tal e qual o youtuber brasileiro Luccas Neto. Maria Luís fala pelos
cotovelos e, no meio de um discurso articulado a enganar os quatro anos de
idade, entram palavras como geladeira, mamadeira, picolé, sorvete ou trollar. O
português do Brasil está a invadir o vocabulário das crianças à boleia de
influenciadores infantis do outro lado do Atlântico que inundam o YouTube e
acumulam dezenas de milhões de seguidores.
As respostas de Maria Luís têm pressa, chegam
num ápice. “O meu youtuber preferido é o Luccas Neto porque ele é divertido e
ensina que temos de pôr o lixo no caixote para não sujar o ambiente.” O maior
influenciador infantil do Brasil tem 29 anos e salta fronteiras. Lança
episódios em que recria momentos do dia a dia, na escola, no supermercado, em
brincadeiras no exterior, com várias personagens. Produções que envolvem uma
equipa enorme e que já chegaram à Netflix e ao merchandising, com brinquedos,
mochilas, jogos, discos, livros. E há mais exemplos de youtubers infantis do
Brasil a ganhar terreno por cá, como Maria Clara & JP. O fenómeno aterrou
em força em Portugal, é transversal no mundo dos mais pequenos.
Na agenda de Maria Luís, que mora em S. João
da Madeira, o dia 20 de novembro está reservado. É o musical de “Luccas Neto e
a Escola de Aventureiros” em Guimarães. O youtuber esgotou aí duas sessões e já
abriu a terceira. Em Lisboa, idem. Na costureira, a mãe Maria João Lima já tem
uma fatiota “igual à da irmã do Luccas Neto” a ganhar forma para Maria Luís
vestir no dia do espetáculo. Ou melhor, do “show”. E a pequena, que parece
carregar toda a energia do Mundo, leva as músicas do youtuber na cabeça,
sabe-as de cor e salteado, e as coreografias também.
“Quando a Maria Luís começou a ver estes
vídeos, notámos que começou a usar algumas palavras de português do Brasil. Não
fala com sotaque, mas vai introduzindo algumas expressões”, revela Maria João.
A solução mais simples não foi pôr-lhe travão em proibições aceleradas, foi
antes explicar que em Portugal não se diz “banheiro” mas sim “casa de banho”.
“Os vídeos até são pedagógicos. Dou por ela a brincar sozinha e a falar sobre o
ambiente. E embora não ache graça nenhuma a ouvi-la dizer estas palavras, a
verdade é que ela evoluiu muito na fala, porque vai reproduzindo o discurso”,
constata a mãe. O fenómeno, acredita Maria João, “tem a ver com o facto de a
língua brasileira ser muito mais sonante e de não haver oferta infantil
portuguesa no YouTube”. Mas Maria Luís, de tão desenvolta, faz os pais baixarem
os alarmes, já sabe dizer palavras com o mesmo significado em português do
Brasil e em português europeu.
As modas, as
influências, a oralidade
E parece ser esse o caminho: não corrigir,
mas sim explicar aos mais novos a diferença. Pelo menos é nisso em que acredita
a linguista Margarita Correia, que não entra em histerismos com o abrasileirar
da fala. “Vejo este fenómeno não só como linguista, mas também como avó. Tenho
um neto que chama a mãe de mamãe e o pai de papai.” Os desenhos animados
dobrados em português do Brasil também são sintoma de uma tendência que diz ser
“normal e enriquecedora”. Basta rebobinarmos umas décadas para o tempo em que as
telenovelas brasileiras, como “Gabriela”, inundaram a televisão portuguesa.
“Nessa altura, já se dizia que a língua estava em risco e sobreviveu. O mesmo
aconteceu com as influências do inglês. Depois o pânico veio com as
abreviaturas que se usavam nas SMS, as crianças iam deixar de saber escrever.
Nada disso aconteceu. E é muito saudável ouvirem outras variantes do
português.”
As modas da oralidade raramente têm impacto
na língua escrita. Mas é certo que já bebemos muita influência do Brasil. A
expressão “nem que a vaca tussa”, importada das novelas brasileiras, é prova
disso. “Eles são 200 milhões, nós somos dez. É inevitável. E não há que
combater as influências. Há mais de sete mil línguas no Mundo, a língua
portuguesa é provavelmente a quinta mais falada. Como é que pode estar em
risco? A evolução de uma língua resulta da evolução da sociedade que a fala.” E
num português vivo que cresce à boleia das modas de cada época, Margarita
Correia aponta umas quantas. Foi Alexandra Lencastre no programa “Na cama com”,
no início dos anos 90, que introduziu a expressão “à séria” em vez de “a
sério”. “E foi uma reportagem da TVI que aproveitou o título de uma canção para
chamar música pimba à música popular. E não é uma expressão enriquecedora?”,
questiona.
A professora de Português Filomena Viegas
também não dramatiza. O “policial”, o “café da manhã” ou a “geladeira” até a
podem incomodar, mas sabe que o pequeno Portugal não pode lutar contra um
gigante Brasil. “Não vale a pena remar contra uma maré de milhões, isto vai
continuar a acontecer.” De purista tem pouco, a verdade é que já dizemos
“email” em vez de “correio eletrónico” ou “site” em vez de “sítio”. “Também
enraizamos o bué. E há problema? Não é isso que faz uma língua. O caminho é
explicar que o youtuber diz assim e nós cá dizemos assado. Perdemos tempo a
ensinar? Sim, mas vale a pena tirar partido disto, é uma oportunidade para a
aprendizagem. Mesmo em Portugal, temos variantes, no norte, no sul, nas ilhas.”
Numa idade em que absorvem tudo, ainda antes
da entrada na Primária, as crianças são “pequenos aspiradores de palavras” e
proibir não é solução. Os pais, aconselha, devem continuar a falar no português
europeu. “Os miúdos têm capacidade para aprenderem várias línguas ao mesmo
tempo e, quanto mais variantes ouvirem e isso lhes for explicado, mais vão
aprender.”
“Já sei que gramado é
relva”
Henrique Guerra está em casa, em Lisboa,
agarrado ao tablet a ver o youtuber brasileiro Robin Hood a ensinar a jogar
Minecraft. Tem cinco anos. “Ele está a jogar e vejo para aprender. Mas os meus
pais já me ensinaram que gramado é relva”, atira o petiz. Deixa logo tudo em
pratos limpos, como quem quer vincar, no meio de uma timidez apressada, que
sabe distinguir o português do Brasil do português europeu. Os pais, André
Guerra, bancário, e Patrícia Luz, administrativa, foram corrigindo algumas
palavras. “Não é querer castrar. Mas ele dizia reais em vez de moedas, marrom
em vez de castanho, goleiro em vez de guarda-redes e quisemos ensinar. Não para
dizer que está errado, mas para explicar que no Brasil diz-se de uma maneira e
em Portugal diz-se de outra. Até porque ele tem amigos brasileiros no
pré-escolar e já percebe a diferença”, comenta o pai.
O caminho no YouTube começou aí há uns dois
anos, quando Henrique descobriu o Luccas Neto. Desde então que os youtubers
brasileiros, que falam alto e bom som – para irritação dos pais -, entraram
pela porta de casa da família sem pedir licença. André e Patrícia já os
reconhecem só de os ouvir entoar no tablet. E os brinquedos que abundam nos
vídeos também trazem atrelados pedidos constantes. “Acho que os conteúdos até
são interessantes e podem influenciar positivamente. Mas há uma grande vertente
comercial, virada para o consumismo, e isso, sim, tentamos combater”, diz
André. A entrada de algumas palavras do Brasil no vocabulário de Henrique não
os assusta, mas o casal conhece o caso de uma menina que só fala com a
pronúncia brasileira e talvez aí o fenómeno ganhe outra escala.
Os riscos e quando é
preciso intervir
Segundo a psicóloga Manuela Cameirão, é aí
que está o risco. “Já me deparei com casos desses, sobretudo em contexto
pré-escolar, é nessa faixa que o fenómeno mais está a acontecer. Duas crianças,
muito fãs de youtubers brasileiros, com total ausência do recurso ao português
de Portugal.” Sabe que os vocábulos do Brasil já começaram a entrar no país há
uns bons anos, “e isso é normal e desejável, as línguas estão vivas”. A
preocupação chega quando vê crianças que falam integralmente o português do
Brasil. É o nível extremo. “Porque uma criança que cresce em Portugal, filha de
pais portugueses, que está exposta ao português europeu diariamente, falar
português do Brasil de forma intensiva significa uma grande exposição, tempo
excessivo no YouTube. Quer dizer que não está a trabalhar a motricidade e que
passa muito tempo sozinha a interagir com um aparelho eletrónico.”
A psicóloga antevê potenciais alterações ao
nível da socialização e o risco de dificuldades de aprendizagem na hora de
entrar no 1.º Ciclo, nomeadamente na leitura, que implica associar sons da fala
a letras. “Os fonemas numa variante e noutra são diferentes. E mesmo na
escrita, a língua difere muito na construção de frases. É o exemplo do dá-me ou
me dá.” Para os casos em que a criança já só fala com o vocabulário e o sotaque
típico do português da outra margem do Atlântico, Manuela Cameirão alerta que
os pais podem procurar ajuda de um terapeuta da fala. “Mas isso deve acontecer
antes de entrar para a escola. A partir dos sete anos, pode ser difícil
reverter. E, mesmo querendo, a criança já será muito resistente à intervenção.”
O fenómeno tende a crescer – também já se faz
notar entre adolescentes e jovens -, é o mundo do YouTube infantil em ascensão.
E unânime, entre os especialistas, é a ideia de que importar algumas palavras
do Brasil para a fala não é problemático. Tal como Maria Luís faz. No próximo
domingo, a pequena grande fã do Luccas Neto faz cinco anos. Antes disso, a irmã
mais nova, que ainda está na barriga da mãe, deve nascer. Mas o entusiasmo maior
dos próximos tempos ela não tem dúvidas qual é: “Ir ao ‘show’ do Luccas Neto.
Acho que ele vai saltar e cantar muitas músicas”.