AFFONSO ROMANO
DE SANT’ANNA
O rosto da mulher madura entrou na moldura de
meus olhos.
De repente, a surpreendo num banco olhando de
soslaio, aguardando sua vez no balcão.
Outras vezes ela passa por mim na rua entre
os camelôs. Vezes outras a entrevejo no espelho de uma joalheria. A mulher
madura, com seu rosto denso esculpido como o de uma atriz, tem qualquer coisa
de Melina Mercouri ou de Anouke Aimé.
Há
uma serenidade nos seus gestos, longe dos desperdícios da adolescência, quando
se esbanja pernas, braços e bocas ruidosamente. A adolescente não sabe ainda os
limites de seu corpo e vai florescendo estabanada. E como um nadador
principiante, faz muito barulho, joga muita água para os lados. Enfim,
desborda.
A
mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe. O silêncio em
torno de seus gestos tem algo de repouso da garça sobre o lago. Seu olhar sobre
os objetos não é de gula ou de concupiscência. Seus olhos não violam as coisas,
mas as envolvem ternamente. Sabem a distância entre seu corpo e o mundo.
A
mulher madura é assim: tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco,
inteira. Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs.
A
adolescente com o brilho de seus cabelos, com essa irradiação que vem dos
dentes e os olhos, nos extasia. Mas a mulher madura tem um som de adágio em
suas formas. E até no gozo ela soa com a profundidade de um violoncelo e a
sutileza de um oboé sobre a campina do leito.
A boca da mulher madura tem uma indizível
sabedoria. Ela chorou na madrugada e abriu-se em opaco espanto. Ela conheceu a
traição e ela mesma saiu sozinha para se deixar invadir pela dimensão de outros
corpos. Por isto, as suas mãos são líricas no drama e repõem no seu corpo um
aprendizado da macia paina de setembro e abril.
O corpo da mulher madura é um corpo
que já tem história. Inscrições se fizeram na sua superfície. Seu
corpo não é como na adolescência uma pura e agreste possibilidade. Ela conhece
seus mecanismos, apalpa suas mensagens, decodifica as ameaças numa intimidade
respeitosa.
Sei que falo de uma certa mulher madura
localizada numa classe social, e os mais politizados têm que ter condescendência
e me entender. A maturidade também vem à mulher pobre, mas vem com tal
violência que o verde se perverte e sobre os casebres e corpos tudo de reveste
de uma marrom tristeza.
Na verdade, talvez a mulher madura não se
saiba assim inteira ante seu olho anterior. Talvez a sua aura se inscreva
melhor no olho exterior, que a maturidade é também algo que o outro nos
confere, complementarmente. Maturidade é essa coisa dupla: um jogo de espelhos
revelador.
Cada idade tem seu esplendor. É um equívoco
pensá-lo apenas como um relâmpago de juventude, um brilho de raquetes e pernas
sobre as praias do tempo. Cada idade tem seu brilho e é preciso que
cada um descubra o fulgor do próprio corpo.
A mulher madura está pronta para algo
definitivo.
Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça
de Siena, à tarde acompanhando com o complacente olhar o voo das andorinhas e
as crianças a brincar. A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta
para ir à Grécia. Descolou-se da superfície das coisas. Merece profundidades.
Por isso, pode-se dizer que a mulher madura não ostenta joias. As joias
brotaram de seu tronco, incorporaram-se naturalmente ao seu rosto, como se
fossem prendas do tempo.
A mulher madura é um ser luminoso e
repousante às quatro horas da tarde, quando as sereias se banham e saem
discretamente perfumadas com seus filhos pelos parques do dia. Pena que seu
marido não note, perdido que está nos escritórios e mesquinhas ações nos
múltiplos mercados dos gestos. Ele não sabe, mas deveria voltar para casa tão
maduro quanto Yves Montand e Paul Newman, quando nos seus filmes.
Sobretudo, o primeiro namorado ou o primeiro
marido não sabem o que perderam em não esperá-la madurar. Ali está uma mulher
madura, mais que nunca pronta para quem a souber amar.
(In: Jornal do Brasil,
caderno B, p. 9, dom. 15.09.1985)
Nenhum comentário:
Postar um comentário