18 novembro 2021

ATRÁS DO ESPESSO VÉU


Disse adeus aos pais e, montada no camelo, partiu com a longa caravana na qual seguiam seus bens e as grandes arcas do dote. Atravessaram desertos, atravessaram montanhas.  Chegando afinal à terra do futuro esposo, eis que ele saiu de casa e veio andando ao seu encontro.

“Este é aquele com quem viverás para sempre”, disse o chefe da caravana à mulher.  Então ela pegou a ponta do espesso véu que trazia enrolado na cabeça, e com ele cobriu o rosto, sem que nem se vissem os olhos. Assim permaneceria dali em diante. Para que jamais soubesse o que havia escolhido, aquele que a escolhera sem conhecê-la.

COLASANTI, Marina. Atrás do espesso véu. In: ____. Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p. 47.




[1] ATRÁS DO ESPESSO VÉU

O título do conto já se nos apresenta como um aperitivo para a expectativa, aguçando-nos a curiosidade, a fim de buscarmos solucionar o enigma, o mistério, o desconhecido: o que será que há “atrás do espesso véu”?

O uso do advérbio “atrás”, determina que algo ou alguém não se encontra às claras, oculta-se à espera de ser desvendado. O determinante “espesso” conferirá características que reforçarão a ideia do que mais se esconde.

Detendo-nos, ainda, no determinado “véu”, em sua concretude, ele nos remeterá ao plano imaginativo e ao cultural, possibilitando-nos conjecturas: o quê ou quem estaria atrás de um véu? em que contexto social? quando? onde? e quanto à espessura? O porquê já se construíra como o primeiro enigma, os demais reforçam-lhe o vigor. O enigma se alicerçará, a partir da ótica do “oculto”, do “não visível”, tanto no plano externo, quanto no interno: atrás de um véu espesso, pouco pode ser visto, sob o ponto de vista daquele ou daquilo que se oculta (interno): há uma ideia de fechamento para o mundo a ser percebido (mundo exterior). Entretanto, ao se fechar atrás de um espesso véu, algo ou alguém impossibilita ao mundo externo a visão. Nega-se, portanto, a relação sensorial do visível.

 

[2] DISSE ADEUS AOS PAIS

O verbo, “disse” tem por função identificar o narrador. Mas o fato dessa estrutura não apresentar sujeito determinado, este também se oculta, aumenta ainda mais a expectativa do leitor. Por outro lado, o substantivo “adeus” confere ao texto, a ideia de partida, de despedida. Essa despedida propõe a ruptura do convívio familiar: um filho ou uma filha deixa a casa paterna - “aos pais”.

 

[3] E, Montada No Camelo, Partiu Com A Longa Caravana

A oração reduzida de particípio, intercalada, colocada entre vírgulas e deslocada, possibilita-nos a resolução do primeiro mistério (ou oculto) do texto: “montada” refere-se a uma mulher. Nessa mesma estrutura define-se, também, a situação espacial, pois o substantivo “camelo” designa um mamífero cujo habitat natural é o deserto: outro oculto desfeito.

Na oração coordenada, o substantivo “caravana” confirma a relação espacial já mencionada. Longa não é a caravana, mas a viagem, a distância a ser percorrida. “Partiu” comprova o “adeus” de [2]: uma mulher que deixa a casa paterna e parte, em caravana, para um destino.

 

[4] NA QUAL SEGUIAM SEUS BENS E AS GRANDES ARCAS DO DOTE

O código sociocultural, apenas enunciado em [3], agora se concretiza no sujeito composto da oração adjetiva: “seus bens e as grandes arcas do dote”. A princípio, o substantivo “bens” expressa os pertences pessoais (“seus” – pronome possessivo); “as grandes arcas do dote” configuram aquilo que passa a pertencer a ela, por doação, a estender-se a alguém que, provavelmente, a receberá, outro mistério a desvendar-se.

Depreende-se a possibilidade de um contrato matrimonial – índice comum na sociedade patriarcal do Oriente. Contrapõe-se, ainda, à ideia de “bens”, em proporção inferior, a ideia do “dote”: não há referências específicas quanto ao espaço ocupado pelos “bens” (arcas, talvez?). Entretanto, nota-se que o dote vai em “grandes arcas”. Muito maior é o que vai ser doado, oferecido; menor o que é daquela que o leva.

 

[5] ATRAVESSARAM DESERTOS, ATRAVESSARAM MONTANHA

A gradação, estabelecida pelas coordenadas assindéticas e pela repetição do verbo, intensifica não só a ideia de lentidão da caravana de camelos, mas também da continuidade mantida pela própria rotina do viajar nas paragens orientais. Contudo, percebemos a oposição que se registra a partir dos substantivos “desertos” e “montanhas” que nos remete à ideia de duração da viagem: muito tempo gasto para percorrer a distância.

 

[6] CHEGANDO AFINAL À TERRA DO FUTURO ESPOSO

A reduzida de gerúndio, marcada pela presença do verbo chegar, dá-nos a finalização do percurso. O adjunto adverbial de lugar resolve outro mistério: o objetivo da viagem. Configura-se pelo casamento a realizar-se, confirmada pela expressão “futuro esposo”. Cabe ainda ressaltar a palavra denotativa de situação – “afinal” – que nos reporta à ideia de finalmente, pela chegada; e de enfim sós, pelo encontro daqueles que irão contrair núpcias.

O código sociocultural consolida-se ainda mais: no Oriente, é a mulher que vai ao encontro do homem.

 

[7] EIS QUE ELE SAIU DE CASA E VEIO ANDANDO AO SEU ENCONTRO

Seu efeito é o de revelação: “eis”, palavra que denota designação. O que está designado é o que está determinado por imposição: revela-se o marido; o novo contexto a ser vivenciado.

Interessante observar que o sair de casa para ele é diferente do sair de casa para ela. Da mesma forma, “veio andando” para ele é diferente do percurso para ela, tanto no tempo, quanto na distância e, principalmente, no que se refere ao contexto do homem e ao da mulher no Oriente. “Veio andando” sugere cautela, certa expectativa que produz um andar mais lento. A função da locução verbal confirma-se, assim, retardando o processo de encontro. Partimos do princípio de que quem espera anseia pelo esperado e quer tê-lo mais rapidamente. Ambos eram desconhecidos. Há, aqui, a presença do encontro para o desvendar do desconhecido: o visível.

 

[8] “ESTE É AQUELE COM QUEM VIVERÁS PARA SEMPRE”

Abre-se a frase com aspas, indicativo de discurso direto. “Este” determina a aproximação do que estava longe (“aquele”). A distância é anulada pela presença do verbo em sua forma presente. Determina-se, portanto, a presença masculina e o vaticínio confirma-se a seguir: com quem viverás para sempre. Reforça-se o papel do destino e nega-se a possibilidade do livre arbítrio.

Apresenta, também, o discurso autoritário, característica de uma sociedade patriarcal, na qual a hierarquia sempre coloca a mulher em posição de inferioridade e obediência. O uso da 2ª pessoa do singular (tu) também confirma a aproximação com o imperativo dos dogmas cristãos.

 

[9] DISSE O CHEFE DA CARAVANA À MULHER

A forma verbal “disse” comprova o discurso direto. Mais uma vez, constata-se a posição da mulher nesta sociedade: o pai a entrega a um homem, um acordo estabelecido pelas partes masculinas: a mulher é apenas o objeto comerciado.

 

[10] ENTÃO ELA PEGOU A PONTA DO ESPESSO VÉU QUE TRAZIA ENROLADO NA CABEÇA

“Então” é comum às narrativas orais, tendo como finalidade dar continuidade à narração. Entretanto, a partir dessa palavra, a ação que se segue passa, pela primeira vez, a ser assumida pela personagem feminina. Interessante observar que o uso do pronome pessoal reto – “ela” –, na função de sujeito do verbo “pegou”, determina o agente, mas não o nomeia. Falta, ao conto, o nomear das personagens. O oculto vem se alastrando: sujeitos determinados, ocultos. Em [9], o sujeito modifica-se, deixa de ser pronome, contudo não é também nomeado.

O relevante, sem dúvida, é o deslocamento da ação para a personagem feminina “ela” que, ao pegar “a ponta do espesso véu que trazia enrolado na cabeça”, desvenda mais um oculto: o véu pertence a ela e era usado para enrolar a cabeça. A espessura do véu torna-se pertinente à função por ele desempenhada: proteger contra o sol, o frio e o vento que são inerentes ao deserto, região por onde viaja a caravana.

Parte do enigma já se nos apresenta desfeito; todavia, há, ainda, algo a ser esclarecido: por que será que “ela pegou a ponta do espesso véu”? o que ela pretende fazer com ele? O mistério ressurge e mantém a expectativa.

 

[11] E COM ELE COBRIU O ROSTO

Eis a resposta para a dúvida surgida em [10]: para cobrir o rosto, ela retira o véu que enrolava a cabeça. O véu deixa de ter sua função de proteção para assumir outra. Uma nova questão firma-se, completando o mistério anterior: por que cobrir o rosto com o véu espesso? Define-se o clímax da narrativa, constituindo-se, assim, no código narrativo.

Sabemos que, no Oriente, a mulher só descobre o rosto para o marido. Como a mulher encontrava-se diante daquele que seria o seu futuro esposo, provavelmente, num ato instintivo e também cultural, ela cobre seu rosto para que ele não a visse antes do casamento.

 

[12] SEM QUE NEM SE VISSEM OS OLHOS

Pertinente observar a estruturação. A estrutura tem a sua finalidade bem definida: não eram apenas os olhos a serem escondidos, como é do hábito das mulheres orientais esconderem, vedarem; o rosto todo deveria ser coberto, para não ser visto, e, consequentemente, os olhos, que normalmente ficam descobertos, também seriam ocultados. Ver os olhos e ver através deles é penetrar na alma, perceber o mundo interior daquele que é observado: os olhos são o espelho da alma.

O desvendar não mais no plano externo do leitor, mas no plano interno da narrativa, o dos personagens. Levando-se em consideração que “sem que” é locução conjuntiva condicional, depreende-se daqui a condição que será estabelecida por ela: nem os olhos, nem todo o rosto poderão ser vistos. A reação da personagem feminina possibilita-nos uma reflexão mais profunda: da mesma forma que ela saiu para o desconhecido (sem ter a visão daquele para quem fora determinada), assim também nega a ele a possibilidade de perceber-lhe a alma.

 

[13] ASSIM PERMANECERIA DALI EM DIANTE

A decisão tomada pela mulher seria mantida e continuada. Dois adjuntos adverbiais – o primeiro, de modo; o segundo, de tempo – reforçam a atitude e confirmam a determinação e, talvez, o único domínio que ela poderia ter sobre a situação que lhe fora imposta: o rosto, especialmente os olhos, jamais seriam descobertos. Aquele a quem ela se destinara, por contrato matrimonial, não a teria com a alma, não a mediria através do olhar. Fechava-se ela para ele.

 

[14] PARA QUE JAMAIS SOUBESSE O QUE HAVIA ESCOLHIDO

Nessa estrutura, iniciada pela locução conjuntiva que expressa finalidade, seguida do advérbio jamais, há a reiteração do que já fora exposto em [13]. Contudo, o verbo “soubesse”, transitivo direto, vem completado pelo demonstrativo “o”, trazendo-nos uma particularidade: “o” equivale a aquilo, reforçando a ideia de objeto, de mercadoria, confirmada pelo verbo principal da oração adjetiva – “escolhido” – cujo sentido também transita para um “que” (pronome relativo), reiterando a mesma ideia do demonstrativo “o”.

 

[15] Aquele Que A Escolhera Sem Conhecê-La

Inicia-se com o demonstrativo “aquele”, que se refere ao futuro esposo. Em sua função é o que mais se distancia, como já foi dito anteriormente. O distanciamento dele é confirmado em relação a ela. Por cobrir-se com o espesso véu para sempre, ela o afastará de sua intimidade: o enigma agora será vivido por ele.

Há, nessa unidade, uma inversão: ela passa a ser o grande enigma para ele, além de estabelecer as regras do jogo amoroso, se é que o mesmo será realizado. Percebemos, ainda, o poder da mulher, apesar da narrativa acontecer num contexto masculino. Ela usa de sua arma mais poderosa, a sensualidade, porém encoberta. Conhecê-la, vislumbrá-la, só a ela caberia o direito de determinar o momento. O corpo pode vir a pertencer-lhe, mas jamais a alma.

Num plano social, em que a mulher se vê subjugada, oprimida, desrespeitada, só lhe cabe uma resposta: negar-se ao mundo que lhe impõe as regras, não permitindo que este mundo a veja, abstendo-se também de vê-lo.


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