Disse
adeus aos pais e, montada no camelo, partiu com a longa caravana na qual
seguiam seus bens e as grandes arcas do dote. Atravessaram desertos,
atravessaram montanhas. Chegando afinal
à terra do futuro esposo, eis que ele saiu de casa e veio andando ao seu
encontro.
“Este
é aquele com quem viverás para sempre”, disse o chefe da caravana à mulher. Então ela pegou a ponta do espesso véu que
trazia enrolado na cabeça, e com ele cobriu o rosto, sem que nem se vissem os
olhos. Assim permaneceria dali em diante. Para que jamais soubesse o que havia
escolhido, aquele que a escolhera sem conhecê-la.
COLASANTI, Marina. Atrás do espesso véu. In: ____. Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro:
Rocco, 1986. p. 47.
[1] ATRÁS DO
ESPESSO VÉU
O título do conto já se nos
apresenta como um aperitivo para a expectativa, aguçando-nos a curiosidade, a
fim de buscarmos solucionar o enigma, o mistério, o desconhecido: o que será que
há “atrás do espesso véu”?
O uso do advérbio “atrás”,
determina que algo ou alguém não se encontra às claras, oculta-se à espera de
ser desvendado. O determinante “espesso” conferirá características que
reforçarão a ideia do que mais se esconde.
Detendo-nos, ainda, no
determinado “véu”, em sua concretude, ele nos remeterá ao plano imaginativo e
ao cultural, possibilitando-nos conjecturas: o quê ou quem estaria atrás de um
véu? em que contexto social? quando? onde? e quanto à espessura? O porquê já se
construíra como o primeiro enigma, os demais reforçam-lhe o vigor. O enigma se
alicerçará, a partir da ótica do “oculto”, do “não visível”, tanto no plano
externo, quanto no interno: atrás de um véu espesso, pouco pode ser visto, sob
o ponto de vista daquele ou daquilo que se oculta (interno): há uma ideia de
fechamento para o mundo a ser percebido (mundo exterior). Entretanto, ao se
fechar atrás de um espesso véu, algo ou alguém impossibilita ao mundo externo a
visão. Nega-se, portanto, a relação sensorial do visível.
[2] DISSE
ADEUS AOS PAIS
O verbo, “disse” tem por função
identificar o narrador. Mas o fato dessa estrutura não apresentar sujeito
determinado, este também se oculta, aumenta ainda mais a expectativa do leitor.
Por outro lado, o substantivo “adeus” confere ao texto, a ideia de partida, de despedida.
Essa despedida propõe a ruptura do convívio familiar: um filho ou uma filha
deixa a casa paterna - “aos pais”.
[3] E, Montada No Camelo, Partiu Com A Longa Caravana
A oração reduzida de particípio,
intercalada, colocada entre vírgulas e deslocada, possibilita-nos a resolução
do primeiro mistério (ou oculto) do texto: “montada” refere-se a uma mulher.
Nessa mesma estrutura define-se, também, a situação espacial, pois o
substantivo “camelo” designa um mamífero cujo habitat natural é o deserto:
outro oculto desfeito.
Na oração coordenada, o
substantivo “caravana” confirma a relação espacial já mencionada. Longa não é a
caravana, mas a viagem, a distância a ser percorrida. “Partiu” comprova o
“adeus” de [2]: uma mulher que deixa a casa paterna e parte, em caravana, para
um destino.
[4] NA QUAL SEGUIAM SEUS BENS E AS GRANDES ARCAS DO DOTE
O código sociocultural, apenas
enunciado em [3], agora se concretiza no sujeito composto da oração adjetiva:
“seus bens e as grandes arcas do dote”. A princípio, o substantivo “bens”
expressa os pertences pessoais (“seus” – pronome possessivo); “as grandes arcas
do dote” configuram aquilo que passa a pertencer a ela, por doação, a
estender-se a alguém que, provavelmente, a receberá, outro mistério a
desvendar-se.
Depreende-se a possibilidade de
um contrato matrimonial – índice comum na sociedade patriarcal do Oriente.
Contrapõe-se, ainda, à ideia de “bens”, em proporção inferior, a ideia do
“dote”: não há referências específicas quanto ao espaço ocupado pelos “bens”
(arcas, talvez?). Entretanto, nota-se que o dote vai em “grandes arcas”. Muito
maior é o que vai ser doado, oferecido; menor o que é daquela que o leva.
[5]
ATRAVESSARAM DESERTOS, ATRAVESSARAM MONTANHA
A gradação, estabelecida pelas
coordenadas assindéticas e pela repetição do verbo, intensifica não só a ideia
de lentidão da caravana de camelos, mas também da continuidade mantida pela
própria rotina do viajar nas paragens orientais. Contudo, percebemos a oposição
que se registra a partir dos substantivos “desertos” e “montanhas” que nos
remete à ideia de duração da viagem: muito tempo gasto para percorrer a
distância.
[6] CHEGANDO
AFINAL À TERRA DO FUTURO ESPOSO
A reduzida de gerúndio, marcada
pela presença do verbo chegar, dá-nos a finalização do percurso. O adjunto
adverbial de lugar resolve outro mistério: o objetivo da viagem. Configura-se
pelo casamento a realizar-se, confirmada pela expressão “futuro esposo”. Cabe
ainda ressaltar a palavra denotativa de situação – “afinal” – que nos reporta à
ideia de finalmente, pela chegada; e de enfim sós, pelo encontro daqueles que
irão contrair núpcias.
O código sociocultural
consolida-se ainda mais: no Oriente, é a mulher que vai ao encontro do homem.
[7] EIS QUE
ELE SAIU DE CASA E VEIO ANDANDO AO SEU ENCONTRO
Seu efeito é o de revelação:
“eis”, palavra que denota designação. O que está designado é o que está
determinado por imposição: revela-se o marido; o novo contexto a ser vivenciado.
Interessante observar que o sair
de casa para ele é diferente do sair de casa para ela. Da mesma forma, “veio
andando” para ele é diferente do percurso para ela, tanto no tempo, quanto na
distância e, principalmente, no que se refere ao contexto do homem e ao da
mulher no Oriente. “Veio andando” sugere cautela, certa expectativa que produz
um andar mais lento. A função da locução verbal confirma-se, assim, retardando
o processo de encontro. Partimos do princípio de que quem espera anseia pelo
esperado e quer tê-lo mais rapidamente. Ambos eram desconhecidos. Há, aqui, a presença
do encontro para o desvendar do desconhecido: o visível.
[8] “ESTE É
AQUELE COM QUEM VIVERÁS PARA SEMPRE”
Abre-se a frase com aspas,
indicativo de discurso direto. “Este” determina a aproximação do que estava
longe (“aquele”). A distância é anulada pela presença do verbo em sua forma
presente. Determina-se, portanto, a presença masculina e o vaticínio confirma-se
a seguir: com quem viverás para sempre. Reforça-se o papel do destino e nega-se
a possibilidade do livre arbítrio.
Apresenta, também, o discurso
autoritário, característica de uma sociedade patriarcal, na qual a hierarquia
sempre coloca a mulher em posição de inferioridade e obediência. O uso da 2ª
pessoa do singular (tu) também confirma a aproximação com o imperativo dos
dogmas cristãos.
[9] DISSE O
CHEFE DA CARAVANA À MULHER
A forma verbal “disse” comprova o
discurso direto. Mais uma vez, constata-se a posição da mulher nesta sociedade:
o pai a entrega a um homem, um acordo estabelecido pelas partes masculinas: a
mulher é apenas o objeto comerciado.
[10] ENTÃO
ELA PEGOU A PONTA DO ESPESSO VÉU QUE TRAZIA ENROLADO NA CABEÇA
“Então” é comum às narrativas
orais, tendo como finalidade dar continuidade à narração. Entretanto, a partir
dessa palavra, a ação que se segue passa, pela primeira vez, a ser assumida
pela personagem feminina. Interessante observar que o uso do pronome pessoal
reto – “ela” –, na função de sujeito do verbo “pegou”, determina o agente, mas
não o nomeia. Falta, ao conto, o nomear das personagens. O oculto vem se alastrando:
sujeitos determinados, ocultos. Em [9], o sujeito modifica-se, deixa de ser
pronome, contudo não é também nomeado.
O relevante, sem dúvida, é o
deslocamento da ação para a personagem feminina “ela” que, ao pegar “a ponta do
espesso véu que trazia enrolado na cabeça”, desvenda mais um oculto: o véu
pertence a ela e era usado para enrolar a cabeça. A espessura do véu torna-se
pertinente à função por ele desempenhada: proteger contra o sol, o frio e o
vento que são inerentes ao deserto, região por onde viaja a caravana.
Parte do enigma já se nos
apresenta desfeito; todavia, há, ainda, algo a ser esclarecido: por que será
que “ela pegou a ponta do espesso véu”? o que ela pretende fazer com ele? O
mistério ressurge e mantém a expectativa.
[11] E COM
ELE COBRIU O ROSTO
Eis a resposta para a dúvida
surgida em [10]: para cobrir o rosto, ela retira o véu que enrolava a cabeça. O
véu deixa de ter sua função de proteção para assumir outra. Uma nova questão
firma-se, completando o mistério anterior: por que cobrir o rosto com o véu
espesso? Define-se o clímax da narrativa, constituindo-se, assim, no código
narrativo.
Sabemos que, no Oriente, a mulher
só descobre o rosto para o marido. Como a mulher encontrava-se diante daquele
que seria o seu futuro esposo, provavelmente, num ato instintivo e também
cultural, ela cobre seu rosto para que ele não a visse antes do casamento.
[12] SEM QUE
NEM SE VISSEM OS OLHOS
Pertinente observar a
estruturação. A estrutura tem a sua finalidade bem definida: não eram apenas os
olhos a serem escondidos, como é do hábito das mulheres orientais esconderem,
vedarem; o rosto todo deveria ser coberto, para não ser visto, e, consequentemente,
os olhos, que normalmente ficam descobertos, também seriam ocultados. Ver os
olhos e ver através deles é penetrar na alma, perceber o mundo interior daquele
que é observado: os olhos são o espelho da alma.
O desvendar não mais no plano
externo do leitor, mas no plano interno da narrativa, o dos personagens.
Levando-se em consideração que “sem que” é locução conjuntiva condicional,
depreende-se daqui a condição que será estabelecida por ela: nem os olhos, nem
todo o rosto poderão ser vistos. A reação da personagem feminina
possibilita-nos uma reflexão mais profunda: da mesma forma que ela saiu para o
desconhecido (sem ter a visão daquele para quem fora determinada), assim também
nega a ele a possibilidade de perceber-lhe a alma.
[13] ASSIM
PERMANECERIA DALI EM DIANTE
A decisão tomada pela mulher
seria mantida e continuada. Dois adjuntos adverbiais – o primeiro, de modo; o
segundo, de tempo – reforçam a atitude e confirmam a determinação e, talvez, o
único domínio que ela poderia ter sobre a situação que lhe fora imposta: o
rosto, especialmente os olhos, jamais seriam descobertos. Aquele a quem ela se
destinara, por contrato matrimonial, não a teria com a alma, não a mediria
através do olhar. Fechava-se ela para ele.
[14] PARA
QUE JAMAIS SOUBESSE O QUE HAVIA ESCOLHIDO
Nessa estrutura, iniciada pela
locução conjuntiva que expressa finalidade, seguida do advérbio jamais, há a
reiteração do que já fora exposto em [13]. Contudo, o verbo “soubesse”,
transitivo direto, vem completado pelo demonstrativo “o”, trazendo-nos uma
particularidade: “o” equivale a aquilo, reforçando a ideia de objeto, de
mercadoria, confirmada pelo verbo principal da oração adjetiva – “escolhido” –
cujo sentido também transita para um “que” (pronome relativo), reiterando a
mesma ideia do demonstrativo “o”.
[15] Aquele Que A Escolhera Sem Conhecê-La
Inicia-se com o demonstrativo
“aquele”, que se refere ao futuro esposo. Em sua função é o que mais se
distancia, como já foi dito anteriormente. O distanciamento dele é confirmado
em relação a ela. Por cobrir-se com o espesso véu para sempre, ela o afastará
de sua intimidade: o enigma agora será vivido por ele.
Há, nessa unidade, uma inversão:
ela passa a ser o grande enigma para ele, além de estabelecer as regras do jogo
amoroso, se é que o mesmo será realizado. Percebemos, ainda, o poder da mulher,
apesar da narrativa acontecer num contexto masculino. Ela usa de sua arma mais
poderosa, a sensualidade, porém encoberta. Conhecê-la, vislumbrá-la, só a ela
caberia o direito de determinar o momento. O corpo pode vir a pertencer-lhe,
mas jamais a alma.
Num plano social, em que a mulher
se vê subjugada, oprimida, desrespeitada, só lhe cabe uma resposta: negar-se ao
mundo que lhe impõe as regras, não permitindo que este mundo a veja,
abstendo-se também de vê-lo.
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