O cruzeiro do coracle
Não sei quanto tempo eu dormi, mas já era dia
claro quando acordei e vi que estava a sudoeste da Ilha do Tesouro. O sol ainda
se escondia atrás do Morro da Luneta, que desse lado da ilha descia quase até o
mar.
Estava bem próximo do Morro da Mezena. Naquele
trecho o mar batia em penhascos de 40 ou 50 pés de altura cercados de grandes pedras
caídas no mar. Estava perto e meu primeiro pensamento foi remar de volta para a
terra.
Essa ideia foi logo abandonada. Entre as pedras,
a arrebentação espumava e uivava. As ondas reverberavam pesadas, uma após a outra,
borrifando água salgada que ia alto e caía com tudo. Logo vi que não tinha a
menor chance de sobreviver tentando chegar à terra por ali.
Um pouco mais ao norte, o terreno se estendia por
um longo trecho, revelando com a maré baixa uma longa faixa de areia amarela. A
ponta oposta dessa praia era chamada de Ponta das Florestas no mapa, e merecia
o nome. Era coberta por pinheiros verdes que vinham até a beira do mar. Veio à
minha memória o que Silver tinha dito sobre a corrente que corria para norte ao
longo da costa oeste da Ilha do Tesouro. Pela minha posição percebi que já
estava sob sua influência e preferi reservar minha força para tentar
desembarcar na Ponta das Florestas, de aparência mais amistosa.
O mar se movia com uma ondulação alta, mas suave.
O vento soprava firme e gentil vindo do sul, não havia conflito entre ele e a correnteza,
e os vagalhões se levantavam e caíam sem quebrar.
Caso as condições fossem outras, teria morrido.
Acabou sendo uma surpresa como meu barquinho leve era levado com facilidade e
segurança para cima e para baixo pelas ondas. Eu ficava a maior parte do tempo
deitado no fundo, só espiando por cima da amurada, e via aquele grande pico
azul se levantando bem perto de mim. O pequeno coracle sacudia um pouco,
dançava como se estivesse em uma corredeira e deslizava por trás da onda, leve como
um pássaro.
Reuni coragem e me sentei para tentar remar. Mas,
mal tinha me movido, o barco interrompera seu movimento suave e ritmado,
passando a descer uma parede de água tão íngreme que me deu vertigem, embicando
o nariz e borrifando água salgada de encontro à onda seguinte.
Fiquei encharcado e apavorado, e voltei à posição
anterior, onde me pareceu que o coracle tinha reencontrado o rumo de novo, me
levando suavemente como antes pelos vagalhões. Estava claro que não podia
interferir, e daquele jeito, já que não podia alterar o curso, que chance teria
de chegar a terra firme?
Comecei a ficar com um medo horrível, mas mantive
a cabeça fria. Primeiro, me movendo com todo o cuidado, usei meu gorro para
esvaziar o fundo do coracle. [...]
Notei que não podia alterar seu equilíbrio, mas
que seria possível pôr o remo por cima da borda e, de vez em quando, nos
trechos mais serenos, dar uma remada ou duas na direção da costa. Comecei a
agir assim que pensei nisso. Fiquei deitado sobre os cotovelos numa postura
cansativa, e de vez em quando dava uma ou duas pequenas remadas para alterar o
rumo do coracle em direção à terra. [...]
Bem à minha frente, nem meia milha distante,
avistei a Hispaniola com as velas levantadas. É claro que tinha certeza de que
seria capturado, mas estava tão aflito com a sede que nem ligava. Porém, a
surpresa logo tomou conta da minha mente, e não pude fazer nada além de olhar e
me admirar.
A escuna estava com a vela principal e duas
bujarronas desfraldadas ao vento. Quando a vi pela primeira vez, as velas
estavam enfunadas e ela rumava para noroeste. Presumi que os homens a bordo
estivessem contornando a ilha para voltar ao ancoradouro. Logo depois ela
começou a buscar cada vez mais o rumo oeste, então pensei que tivesse me visto e
partido em perseguição. Finalmente, contudo, ela se deixou levar para a linha do
vento e ficou ali, inerte e indefesa, com as velas panejando. [...]
Enquanto isso, a escuna aos poucos atravessou a
linha do vento e acabou mudando a bordo, começando a inflar as velas de novo.
Navegou suavemente por cerca de 1 minuto e ficou mais uma vez com o nariz
voltado para o vento. Todo o movimento se repetiu outras vezes. A Hispaniola
velejava na base de arranques e impulsos, dando voltas como se ninguém a
dirigisse. [...] Se conseguisse embarcar, talvez pudesse recuperar o navio.
A corrente empurrava o coracle e a escuna para o
norte. Quanto ao velejo desta última, era tão selvagem e intermitente, e ficava
tanto tempo de cara para o vento, que com certeza não avançava nada, se é que
não se atrasava na prática. Resolvi me arriscar e sentar e remar para tentar
alcançá-la. A lembrança do tonel de água no castelo de proa dobrou minha
coragem crescente.
Sentei-me e fui imediatamente recebido por outra
nuvem de borrifo, mas dessa vez mantive meu propósito e comecei, com o máximo
de força e cuidado, a remar. Aos poucos, peguei o jeito e conduzi meu coracle pelas
ondas, com raros momentos em que a água entrou por cima da borda e a espuma
veio na minha cara. [...]
Por algum tempo ela ficou fazendo a pior coisa
possível para mim: ficou parada. Quando ela não se atrasava dando voltas, a
força da corrente somada ao efeito do vento sobre seu casco e velame fazia com
que se afastasse. [...]
Estava a menos de 100 jardas dela quando o vento
voltou de repente. A escuna deu uma volta, até ficar de lado para mim, e continuou
girando enquanto percorria a metade, e depois dois terços, e então três quartos
da distância que nos separava. Podia ver as ondas espumando contra sua
linha-d’água. Parecia imensamente alta da minha posição rasteira no coracle.
Foi quando me deu um estalo e comecei a compreender. Tinha muito pouco tempo para pensar. Aliás, mal tive tempo para agir e me salvar. Estava no topo de uma onda quando a escuna veio deslizando por cima da seguinte. O gurupés estava sobre minha cabeça, fiquei de pé e saltei, afundando o coracle para dentro da água. Com uma mão me agarrei à retranca da bujarrona, e meu pé se alojou entre o estai e seu suporte. Enquanto me agarrava como podia, um barulho seco me contou que a escuna tinha abalroado o coracle, e eu estava na Hispaniola sem ter como fugir.
STEVENSON, Robert Louis. A Ilha do Tesouro.
Tradução e adaptação de Rodrigo Machado. São Paulo: FTD, 2016. p. 199, 202-206.
(Coleção Almanaque dos clássicos da literatura).
1.
As narrativas de aventura são histórias de ação e de suspense que se
desenvolvem em locais desafiadores para as personagens.
a)
Jim Hawkins, protagonista da história que você leu, enfrenta situações que
exigem algumas qualidades. No caderno, transcreva as características que, na
sua opinião, podem ser relacionadas a esse personagem a partir das ações e
atitudes realizadas por ele durante a narrativa.
fraqueza - coragem - bom
humor - inteligência
força física – perspicácia - capacidade de solucionar
problemas
b) Em sua opinião, que ações desenvolvidas pelo personagem durante a narrativa destacam essas características dele?
2. Por que é necessário o protagonista de uma narrativa de aventura ter características como as que você indicou na atividade anterior?
3. No capítulo, Jim enfrenta situações que são impossíveis no mundo real. Em sua opinião, qual ação do personagem evidencia esse caráter ficcional?
4.
No último parágrafo, a personagem se dá conta do perigo que corria.
Foi
quando me deu um estalo e comecei a compreender. Tinha muito pouco tempo para
pensar. Aliás, mal tive tempo para agir e me salvar.
a)
Qual foi a consequência desse fato?
b) A descrição desse momento ressalta quais características do personagem?
5.
As narrativas de aventura refletem a época em que foram escritas. A obra A Ilha do Tesouro retrata o século XIX,
período em que se produziu muitas histórias de aventuras no mar.
a)
Como o ambiente marítimo é apresentado na história?
b) Quais são os prováveis motivos para que esse cenário fosse bastante explorado nas narrativas de aventura da época?
6.
A obra A Ilha do Tesouro foi
publicada originalmente na revista Young
Folks, entre 1881 e 1882, em uma série em que cada capítulo se encerrava
com um momento de tensão. Em 1883, a série foi transformada em livro. Sobre
isso, responda às seguintes perguntas.
a)
Com que finalidade o autor Robert Louis Stevenson provavelmente usou essa
estratégia de publicação na revista?
b) De que maneira essa estratégia do autor aparece no capítulo que você leu?
7.
No século XIX, não havia luz elétrica nem automóveis e as viagens eram longas e
difíceis. Quando voltavam de suas viagens, as pessoas tornavam-se o centro das atenções,
compartilhando o que viram e vivenciaram. Sendo assim, explique por que as
narrativas de aventura ficaram populares e atraíram tantos leitores.