20 outubro 2024

SE EU FOSSE SHERLOCK HOLMES

 Se eu fosse Sherlock Holmes 

Os romances de Conan Doyle me deram o desejo de empreender alguma façanha no gênero das de Sherlock Holmes. Pareceu-me que deles se concluía que tudo estava em prestar atenção aos fatos mínimos. Destes, por uma série de raciocínios lógicos, era sempre possível subir até o autor do crime.

Quando acabara a leitura do último dos livros de Conan Doyle, meu amigo Alves Calado teve a oportuna nomeação de delegado auxiliar. Íntimos, como éramos, vivendo juntos, como vivíamos, na mesma pensão, tendo até escritório comum de advocacia, eu lhe tinha várias vezes exposto minhas ideias de “detetive”. [...]

Passei dias esperando por algum acontecimento trágico, em que pudesse revelar minha sagacidade. Creio que fiz mais do que esperar: cheguei a desejar.

Uma noite, fui convidado por Madame Guimarães para uma pequena reunião familiar. Em geral, o que ela chamava “pequenas reuniões” eram reuniões de vinte a trinta pessoas, da melhor sociedade. Dançava-se, ouvia-se boa música e quase sempre ela exibia algum “número” curioso: artistas de teatro, de “music hall” ou de circo, que contratava para esse fim. O melhor, porém, era talvez a palestra que então se fazia, porque era mulher muito inteligente e só convidava gente de espírito. Fazia disso questão.

A noite em que eu lá estive entrou bem nessa regra.

Em certo momento, quando ela estava cercada por uma boa roda, apareceu Sinhazinha Ramos. Sinhazinha era sobrinha de Madame Guimarães; casara-se pouco antes com um médico de grande clínica. Vindo só, todos lhe perguntaram:

– Como vai seu marido?

– Tem trabalhado por toda a noite, com uma cliente. [...]

O embaraço dele se dissipou, porque Madame Guimarães perguntou à sobrinha:

– Onde deixaste tua capa?

– No meu automóvel. Não quis ter a maçada de subir.

A casa era de dois andares e Madame Guimarães, nos dias de festas, tomava a si arrumar capas e chapéus femininos no seu quarto:

– Serviço de vestiário é exclusivamente comigo. Não quero confusões. [...]

Nisto, uma das senhoras presentes veio despedir-se de Madame Guimarães. Precisava de seu chapéu. A dona da casa, que, para evitar trocas e desarrumações, era a única a penetrar no quarto que transformara em vestiário, levantou-se e subiu para ir buscar o chapéu da visita, que desejava partir.

Não se demorou muito tempo. Voltou com a fisionomia transtornada:

– Roubaram-me. Roubaram o meu anel de brilhantes...

Todos se reuniram em torno dela. Como era? Como não era? Não havia, aliás, nenhuma senhora que não o conhecesse: um anel com três grandes brilhantes de um certo mau gosto espetaculoso, mas que valia de 60 a 80 contos.

Sherlock Holmes gritou dentro de mim: “Mostra o teu talento, rapaz!”.

Sugeri logo que ninguém entrasse no quarto. Ninguém. Era preciso que a polícia pudesse tomar as marcas digitais que por acaso houvesse na mesa de cabeceira de Madame Guimarães. Porque era lá que tinha estado a joia.

Saltei ao telefone, toquei para o Alves Calado, que se achava de serviço nessa noite, e preveni-o do que havia, recomendando-lhe que trouxesse alguém, perito em datiloscopia.

Ele respondeu de lá com a sua troça habitual:

– Vais afinal entrar em cena com a tua alta polícia científica?

Objetou-me, porém, que a essa hora não podia achar nenhum perito. Aprovou, entretanto, que eu não consentisse ninguém entrar no quarto. Subi então com todo o grupo para fecharmos a porta a chave. Antes de se fechar, era, porém, necessário que Madame Guimarães tirasse as capas que estavam no seu leito. Todos ficaram no corredor, mirando, comentando. Eu fui o único que entrei, mas com um cuidado extremo, um cuidado um tanto cômico de não tocar em coisa alguma. Como olhasse para o teto e para o assoalho, uma das senhoras me perguntou se estava jogando “o carneirinho-carneirão, olhai p’ra o céu, olhai p’ra o chão”.

Retiradas as capas, o zum-zum das conversas continuava. Ninguém tinha entrado no quarto fatídico. Todos o diziam e repetiam.

Foi no meio dessas conversas que Sherlock Holmes cresceu dentro de mim. Anunciei:

– Já sei quem furtou o anel.

De todos os lados surgiam exclamações. Algumas pessoas se limitavam a interjeições: Ah!”, “Oh!”. Outras perguntavam quem tinha sido.

Sherlock Holmes disse o que ia fazer, indicando um gabinete próximo:

– Eu vou para aquele gabinete. Cada uma das senhoras aqui presentes fecha-se ali em minha companhia por cinco minutos.

– Por cinco minutos? – indagou o Dr. Caldas.

– Porque eu quero estar o mesmo tempo com cada uma, para não se poder concluir da maior demora com qualquer delas que essa foi a culpada. Serão para cada uma cinco minutos cronométricos. [...]

E a cerimônia começou. Cada uma das senhoras esteve trancada comigo justamente os cinco minutos que eu marcara.

Quando a última partiu, saiu do gabinete, achei à porta, ansiosa, Madame Guimarães:

– Venha comigo – disse-lhe eu.

Aproximei-me do telefone, chamei o Alves Calado e disse-lhe que não precisava mais tomar providência alguma, porque o anel fora achado.

Voltando-me para Madame Guimarães entreguei-o então. Ela estava tão nervosa que me abraçou e até beijou freneticamente. Quando, porém, quis saber quem fora a ladra, não me arrancou nem uma palavra.

No quarto, ao ver Sinhazinha Ramos entrar, tínhamos tido, mais ou menos, a seguinte conversa:

– Eu não vou deitar verdes para colher maduros, não vou armar cilada alguma. Sei que foi a senhora que tirou a joia de sua tia.

Ela ficou lívida. Podia ser medo. Podia ser cólera. Mas respondeu firmemente:

– Insolente! É assim que o senhor está fazendo com todas, para descobrir a culpada?

– Está enganada. Com as outras converso apenas, conto-lhes anedotas. Com a senhora, não; exijo que me entregue o anel.

Mostrei-lhe o relógio para que visse que o tempo estava passando.

– Note – disse eu – que tenho uma prova. Posso fazê-la ver a todos.

Ela se traiu, pedindo:

– Dê sua palavra de honra que tem essa prova!

Dei. Mas o meu sorriso lhe mostrou que ela, sem dar por isso, confessara indiretamente o fato.

– E já agora – acrescentei – dou-lhe também a minha palavra de honra que nunca ninguém saberá por mim o que fez.

Ela tremia toda.

– Veja que falta um minuto. Não chore. Lembre-se de que precisa sair daqui com uma fisionomia jovial. Diga que estivemos falando de modas.

Ela tirou a joia do seio, deu-me e perguntou:

– Qual é a prova?

– Esta – disse-lhe eu apontando para uma esplêndida rosa-chá que ela trazia. – É a única pessoa, esta noite, que tem aqui uma rosa amarela. Quando foi ao quarto de sua tia, teve a infelicidade de deixar cair duas pétalas dela. Estão junto da mesa de cabeceira.

Abri a porta. Sinhazinha compôs magicamente, imediatamente, o mais encantador, o mais natural dos sorrisos e saiu dizendo:

– Se este Sherlock fez com todas o mesmo que comigo, vai ser um fiasco absoluto.

Não foi fiasco, mas foi pior.

Quando Sinhazinha chegara, subira logo. Graças à intimidade que tinha na casa, onde vivera até a data do casamento, podia fazer isso naturalmente. Ia só para deixar a sua capa dentro de um armário. Mas, à procura de um alfinete, abriu a mesinha de cabeceira, viu o anel, sentiu a tentação de roubá-lo e assim o fez. Lembrou-se de que tinha de ir para a Europa daí a um mês. Lá venderia a joia. Desceu então novamente com a capa e mandou pô-la no automóvel. E como ninguém a tinha visto subir, pôde afirmar que não fora ao andar superior.

Eu estraguei tudo.

Mas a mulherzinha se vingou: a todos insinuou que provavelmente o ladrão tinha sido eu mesmo, e, vendo o caso descoberto antes da minha retirada, armara aquela encenação para atribuir a outrem o meu crime.

O que sei é que Madame Guimarães, que sempre me convidava para as suas recepções, não me convidou para a de ontem... Terá talvez sido a primeira a acreditar na sobrinha.


MEDEIROS e ALBUQUERQUE, José Joaquim de Campos da Costa de. Se eu fosse Sherlock Holmes. In: PAES, José Paulo (org.). Histórias de detetive. São Paulo: Ática, 1993. (Para gostar de ler, v. 12).

 

 


 


 

1. O título do conto remete ao famoso personagem dos contos de detetive.

a) Que características de Sherlock Holmes inspiraram o narrador?

b) Quais traços do narrador-personagem permitem associá-lo ao detetive inglês?

2. Em determinado momento do conto, o narrador-personagem sugere que o próprio Sherlock Holmes participa da investigação com ele. Leia os trechos em que isso ocorre.

Trecho 1 – Sherlock Holmes gritou dentro de mim: [...]

Trecho 2 – Foi no meio dessas conversas que Sherlock Holmes cresceu dentro de mim. [...]

Trecho 3 – Sherlock Holmes disse o que ia fazer, indicando um gabinete próximo [...]

É possível afirmar que o narrador atua na investigação de maneira semelhante a Sherlock Holmes? Justifique.

3. O conto permite ao leitor identificar a época em que a história acontece, por meio da caracterização das personagens e dos costumes mencionados. Cite esses elementos.

4. A sagacidade do narrador o levou a fazer algumas deduções e a elucidar o caso antes mesmo de convocar as mulheres.

a) O que ele observou que foi fundamental para a elucidação do caso?

b) Como o narrador mostra ao leitor que encontrou algo no quarto?

c) Por que dados que revelam descobertas importantes sobre o crime não são apresentados claramente ao leitor no início do texto?

5. A partir do momento em que o narrador anuncia que já sabe quem era o autor do crime, a história começa a ficar parecida com os filmes de investigação policial.

a) O que ajuda a causar essa impressão?

b) A frase “E a cerimônia começou” contribui para a impressão de que o narrador seguirá as regras de uma investigação, como ouvir todos os presentes, ou agirá sem segui-las?

c) Que aspectos da condução da investigação e da elucidação do caso remetem à história de detetives, como as de Sherlock Holmes?

6. No conto de enigma, o leitor participa, com o detetive, do jogo de desvendar do crime.

a) Quais fatos apresentados antes do anúncio do sumiço do anel tornam Sinhazinha a principal suspeita do furto? Justifique.

b) Que informações parecem ser pistas falsas, ao sugerir outras pessoas como suspeitas?

c) O que a apresentação dessas informações pretende provocar no leitor?

7. O final do conto busca surpreender o leitor.

a) Como a personagem considera sua atuação no caso? Por quê?

b) Você esperava esse desfecho? Após ler o conto, como você avalia a situação da personagem?

8. No conto, ao privilegiar a discrição e não revelar a autoria do furto, o narrador-personagem reflete valores culturais que vigoravam na época retratada.

a) Qual foi a provável preocupação dele ao tomar essa decisão? O que essa atitude do narrador-personagem revela sobre os valores da época em que se passa o conto?

b) Em sua opinião, caso o conto fosse ambientado nos dias atuais, como seria o desfecho dessa história?

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