Auto da Barca do Inferno
Gil Vicente
Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplação da sereníssima e muito católica rainha Lianor, nossa senhora, e representado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste nome.
Começa a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se figura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos subitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, scilicet [isto é], um deles passa para o paraíso e o outro para o inferno: os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro.
Diabo: capitão da barca do Inferno.
Anjo:
capitão
da barca do Céu.
Fidalgo:
tirano
e representante da nobreza. Teve uma vida voltada para o luxo e vai para o
inferno.
Onzeneiro: homem ganancioso,
agiota e usurário. Por ter sido um grande avarento na vida ele vai para o
inferno.
Joane,
o parvo: personagem
inocente que teve uma vida simples. Portanto, ele vai para o céu.
Sapateiro:
homem
trabalhador, mas que roubou e enganou seus clientes. Assim, ele vai para o
inferno.
Frade:
representante
da Igreja, que vai para o inferno. Isso porque ele tinha uma amante, Florença,
e não seguiu os princípios do catolicismo.
Brígida
Vaz: alcoviteira
condenada por bruxaria e prostituição que vai para o inferno.
Judeu:
personagem
que foi recusado pelo Diabo e pelo Anjo por não ser adepto ao Cristianismo. Por
fim, ele vai para o inferno.
Corregedor
e Procurador: representantes
da lei. Ambos vão para o inferno, pois foram acusados de serem manipuladores e
utilizarem das leis e da justiça para o bem e interesses pessoais.
Cavaleiros:
grupo
de quatro homens que lutaram para disseminar o cristianismo em vida e portanto,
são absolvidos dos pecados que cometeram e vão para o céu.
* TRECHOS SELECIONADOS
O primeiro interlocutor é um Fidalgo que chega com um Paje, que lhe
leva um rabo mui comprido e uma cadeira de espaldas. E começa o Arrais do
Inferno ante que o Fidalgo venha.
Fildalgo — Esta barca onde vai ora, que assim está apercebida?
Diabo — Vai para a ilha perdida, e há-de partir logo ess’ora.
Fildalgo — Para lá vai a senhora?
Diabo — Senhor, a vosso serviço.
Fildalgo — Parece-me isso cortiço...
Diabo — Porque a vedes lá de fora.
Fildalgo — Porém, a que terra passais?
Diabo — Para o inferno,
senhor.
Fildalgo — Terra é bem sem-sabor.
Diabo — Quê?... E também cá zombais?
Fildalgo — E passageiros achais para tal habitação?
Diabo — Vejo-vos eu em feição para ir ao nosso cais...
Fildalgo — Parece-te a ti assim!...
Diabo — Em que esperas ter guarida?
Fildalgo — Que leixo na outra vida quem reze sempre por mim.
Diabo — Quem reze sempre
por ti?!..[...]
Anjo — Que quereis?
Fildalgo — Que me digais, pois parti tão sem aviso, se a
barca do Paraíso é esta em que navegais.
Anjo — Esta é; que demandais?
Fildalgo — Que me leixeis embarcar. Sou fidalgo de solar, é
bem que me recolhais.
Anjo — Não se embarca tirania neste batel divinal.
Fildalgo — Não sei porque haveis por mal que entre a minha
senhoria...
Anjo — Para vossa fantasia mui estreita é esta barca.
Fildalgo — Para senhor de tal marca nom há aqui mais
cortesia? Venha a prancha e atavio! Levai-me desta ribeira!
Anjo — Não vindes vós de maneira para entrar neste
navio. Essoutro vai mais vazio: a cadeira entrará e o rabo caberá e todo vosso senhorio.
Vêm Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a Cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acrescentamento de Sua santa fé católica morreram em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena per privilégio que os que assim morrem têm dos mistérios da Paixão d’Aquele por Quem padecem, outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja. [...]E passando per diante da proa do batel dos danados assim cantando, com suas espadas e escudos, disse o Arrais da perdição desta maneira:
Diabo — Cavaleiros, vós passais e nom perguntais onde is?
1º CAVALEIRO — Vós, Satanás, presumis? Atentai com quem falais!
2º CAVALEIRO — Vós que nos demandais? Sequer conhecermos bem: morremos nas Partes d’Além,
e não queirais saber mais.
Diabo — Entrai cá! Que cousa é essa? Eu nom posso
entender isto!
Cavaleiros —Quem morre por Jesus Cristo não vai em tal barca
como essa!
Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direito à barca da Glória, e, tanto que chegam, diz o Anjo:
Anjo — Ó cavaleiros de Deus, a vós estou esperando, que
morrestes pelejando por Cristo, Senhor dos Céus! Sois livres de todo mal,
mártires da Santa Igreja, que quem morre em tal
peleja merece paz eternal.
E assim embarcam.
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