04 janeiro 2022

O AUTO DA BARCA DO INFERNO

 Auto da Barca do Inferno

Gil Vicente


Auto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplação da sereníssima e muito católica rainha Lianor, nossa senhora, e representado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste nome.

Começa a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se figura que, no ponto que acabamos de espirar, chegamos subitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão, scilicet [isto é], um deles passa para o paraíso e o outro para o inferno: os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um arrais infernal e um companheiro.


 * PERSONAGENS

Diabo: capitão da barca do Inferno.

Anjo: capitão da barca do Céu.

Fidalgo: tirano e representante da nobreza. Teve uma vida voltada para o luxo e vai para o inferno.

Onzeneiro: homem ganancioso, agiota e usurário. Por ter sido um grande avarento na vida ele vai para o inferno.

Joane, o parvo: personagem inocente que teve uma vida simples. Portanto, ele vai para o céu.

Sapateiro: homem trabalhador, mas que roubou e enganou seus clientes. Assim, ele vai para o inferno.

Frade: representante da Igreja, que vai para o inferno. Isso porque ele tinha uma amante, Florença, e não seguiu os princípios do catolicismo.

Brígida Vaz: alcoviteira condenada por bruxaria e prostituição que vai para o inferno.

Judeu: personagem que foi recusado pelo Diabo e pelo Anjo por não ser adepto ao Cristianismo. Por fim, ele vai para o inferno.

Corregedor e Procurador: representantes da lei. Ambos vão para o inferno, pois foram acusados de serem manipuladores e utilizarem das leis e da justiça para o bem e interesses pessoais.

Cavaleiros: grupo de quatro homens que lutaram para disseminar o cristianismo em vida e portanto, são absolvidos dos pecados que cometeram e vão para o céu.

 

TRECHOS SELECIONADOS

O primeiro interlocutor é um Fidalgo que chega com um Paje, que lhe leva um rabo mui comprido e uma cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha.

Fildalgo — Esta barca onde vai ora, que assim está apercebida?

Diabo — Vai para a ilha perdida, e há-de partir logo ess’ora.

Fildalgo — Para lá vai a senhora?

Diabo — Senhor, a vosso serviço.

Fildalgo — Parece-me isso cortiço...

Diabo — Porque a vedes lá de fora.

Fildalgo — Porém, a que terra passais?

Diabo — Para o inferno, senhor.

Fildalgo — Terra é bem sem-sabor.

Diabo — Quê?... E também cá zombais?

Fildalgo — E passageiros achais para tal habitação?

Diabo — Vejo-vos eu em feição para ir ao nosso cais...

Fildalgo — Parece-te a ti assim!...

Diabo — Em que esperas ter guarida?

Fildalgo — Que leixo na outra vida quem reze sempre por mim.

Diabo — Quem reze sempre por ti?!..[...]

Anjo — Que quereis?

Fildalgo — Que me digais, pois parti tão sem aviso, se a barca do Paraíso é esta em que navegais.

Anjo — Esta é; que demandais?

Fildalgo — Que me leixeis embarcar. Sou fidalgo de solar, é bem que me recolhais.

Anjo — Não se embarca tirania neste batel divinal.

Fildalgo — Não sei porque haveis por mal que entre a minha senhoria...

Anjo — Para vossa fantasia mui estreita é esta barca.

Fildalgo — Para senhor de tal marca nom há aqui mais cortesia? Venha a prancha e atavio! Levai-me desta ribeira!

Anjo — Não vindes vós de maneira para entrar neste navio. Essoutro vai mais vazio: a cadeira entrará e o rabo caberá e todo vosso senhorio.

Vêm Quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a Cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acrescentamento de Sua santa fé católica morreram em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena per privilégio que os que assim morrem têm dos mistérios da Paixão d’Aquele por Quem padecem, outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja. [...]E passando per diante da proa do batel dos danados assim cantando, com suas espadas e escudos, disse o Arrais da perdição desta maneira:

Diabo — Cavaleiros, vós passais e nom perguntais onde is?

1º CAVALEIRO — Vós, Satanás, presumis? Atentai com quem falais!

2º CAVALEIRO — Vós que nos demandais? Sequer conhecermos bem: morremos nas Partes d’Além, e não queirais saber mais.

Diabo — Entrai cá! Que cousa é essa? Eu nom posso entender isto!

Cavaleiros —Quem morre por Jesus Cristo não vai em tal barca como essa!

Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direito à barca da Glória, e, tanto que chegam, diz o Anjo:

Anjo — Ó cavaleiros de Deus, a vós estou esperando, que morrestes pelejando por Cristo, Senhor dos Céus! Sois livres de todo mal, mártires da Santa Igreja, que quem morre em tal

peleja merece paz eternal.

E assim embarcam.

 


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