18 novembro 2021

AO NASCER DO DIA

 

Idalina pulava da cama, acendia o fogo, preparava o chimarrão – sem mate. João não era gente. A maleta de amostras no ombro, ele corria para a estação. Com o apito do trem, eu estalava os dedos e agradava os três cachorrões. Batia na porta da cozinha, só duas vezes, não acordar os meninos.

Idalina abria a porta e prendia os cachorros. Seguíamos apressados para o arvoredo. Eu estendia a capa na grama orvalhada. A fumaça branca na sua boquinha pintada trazia até ali o quente aconchego da cama. Os cães gemiam e arrastavam a corrente, nem a voz da dona os aquietava.

 Em tantos meses o encontro à luz indecisa do bosque. Quando entrou na loja, não me alegrei de vê-la. Fingindo examinar a chita de bolinhas azuis, contou que, preparado o chimarrão e partido o mascate, voltara para a cama. Ouviu o sinal na porta da cozinha. Não duas. Cinco batidas fortes, sem que latissem os cachorros. Não era eu, o coração lhe dizia, assim mesmo prendeu uma fita no cabelo.

Entreabriu a janela: o cunhado José. Tendo-nos surpreendido, iria denunciá-la ao irmão. Bem na hora em que o outro não estava? Eu também quero. José, ele é teu irmão. Você quer o velho Orides e para mim nada? Se não quiser, olhe que eu conto. Espere um pouco que volto.

- Ah, sua ingrata – eu disse – com você não precisa pedir duas vezes?

Idalina saiu da janela. José colocou-se diante da porta. Atirou sobre ele a água da chaleira, queimando-lhe a mão. Berrando, ao se afastar, que contaria tudo ao irmão. Melhor eu não aparecesse até novo recado.

Três semanas passaram. João nas suas viagens. Da mulher não recebi notícia. Rondava o bangalô à distância, o latido dos malditos cães. Insinuava-me por entre as árvores, à espera de algum aviso. Cabeceando de sono, de repente uma gritaria:

- Acudam, bandido. Me acudam!

Na porta, o homem de braço cruzado.

- João, que houve? Que foi?

Ergueu a mão vermelha. Perguntei se foi com o punhal.

- Ele era um ladrão.

Escutei ganidos no capão e corri até lá. Era o irmão, rodeado pelos cachorros, que lambiam as suas feridas. Rosnaram contra mim, observei de longe o quadro. Pelo chão, vestígios de grande luta. Não pude ver se os dedos estavam queimados.

João no mesmo lugar.

- Que houve, João? Onde está Idalina?

Um vizinho, que ouviu o grito dos meninos, surgia com o sargento. Às perguntas, João sacudiu a cabeça.

Já sabia o que achei no quarto: a mulher nua e morta com sete facadas. Antes dos outros, vasculhei as gavetas. Ali debaixo do colchão a carta anônima.

Passamos com a mulher no lençol sujo de sangue. Ele virou o rosto, mas não chorou. Gemia que esfolara um ladrão. Foi conduzido de braço amarrado para a cadeia. O sargento, a balançar a ponta da corda, explicava que João, muito chegado ao mano José e não tendo vícios, só podia estar louco. 

 

Fonte: TREVISAN, Dalton. Cemitério de elefantes. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira , 1975. p. 43. Disponível em: http://tecendolinguagensemrede.blogspot.com/2013/03/tema-contos-de-enigma-ou-suspense-8-ano.html.




MATÉRIA RELACIONADA AO LIVRO "CEM ANOS DE SOLIDÃO"

  Massacre das Bananeiras: conheça história real que inspirou “Cem Anos de Solidão ” O governo colombiano, para proteger uma empresa dos E...