Idalina
pulava da cama, acendia o fogo, preparava o chimarrão – sem mate. João não era
gente. A maleta de amostras no ombro, ele corria para a estação. Com o apito do
trem, eu estalava os dedos e agradava os três cachorrões. Batia na porta da
cozinha, só duas vezes, não acordar os meninos.
Idalina
abria a porta e prendia os cachorros. Seguíamos apressados para o arvoredo. Eu
estendia a capa na grama orvalhada. A fumaça branca na sua boquinha pintada
trazia até ali o quente aconchego da cama. Os cães gemiam e arrastavam a
corrente, nem a voz da dona os aquietava.
Em
tantos meses o encontro à luz indecisa do bosque. Quando entrou na loja, não me
alegrei de vê-la. Fingindo examinar a chita de bolinhas azuis, contou que,
preparado o chimarrão e partido o mascate, voltara para a cama. Ouviu o sinal
na porta da cozinha. Não duas. Cinco batidas fortes, sem que latissem os
cachorros. Não era eu, o coração lhe dizia, assim mesmo prendeu uma fita no
cabelo.
Entreabriu
a janela: o cunhado José. Tendo-nos surpreendido, iria denunciá-la ao irmão.
Bem na hora em que o outro não estava? Eu também quero. José, ele é
teu irmão. Você quer o velho Orides e para mim nada? Se não quiser, olhe que eu
conto. Espere um pouco que volto.
-
Ah, sua ingrata – eu disse – com você não precisa pedir duas vezes?
Idalina
saiu da janela. José colocou-se diante da porta. Atirou sobre ele a água da
chaleira, queimando-lhe a mão. Berrando, ao se afastar, que contaria tudo ao
irmão. Melhor eu não aparecesse até novo recado.
Três
semanas passaram. João nas suas viagens. Da mulher não recebi notícia. Rondava
o bangalô à distância, o latido dos malditos cães. Insinuava-me por entre as
árvores, à espera de algum aviso. Cabeceando de sono, de repente uma gritaria:
-
Acudam, bandido. Me acudam!
Na
porta, o homem de braço cruzado.
-
João, que houve? Que foi?
Ergueu
a mão vermelha. Perguntei se foi com o punhal.
-
Ele era um ladrão.
Escutei
ganidos no capão e corri até lá. Era o irmão, rodeado pelos cachorros, que
lambiam as suas feridas. Rosnaram contra mim, observei de longe o quadro. Pelo
chão, vestígios de grande luta. Não pude ver se os dedos estavam queimados.
João
no mesmo lugar.
-
Que houve, João? Onde está Idalina?
Um
vizinho, que ouviu o grito dos meninos, surgia com o sargento. Às perguntas,
João sacudiu a cabeça.
Já
sabia o que achei no quarto: a mulher nua e morta com sete facadas. Antes dos
outros, vasculhei as gavetas. Ali debaixo do colchão a carta anônima.
Passamos
com a mulher no lençol sujo de sangue. Ele virou o rosto, mas não chorou. Gemia
que esfolara um ladrão. Foi conduzido de braço amarrado para a cadeia. O
sargento, a balançar a ponta da corda, explicava que João, muito chegado ao
mano José e não tendo vícios, só podia estar louco.
Fonte:
TREVISAN, Dalton. Cemitério de elefantes.
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira , 1975. p. 43. Disponível em: http://tecendolinguagensemrede.blogspot.com/2013/03/tema-contos-de-enigma-ou-suspense-8-ano.html.