· Sonetos
(I)
Amor
é um fogo que arde sem se ver,
é
ferida que dói, e não se sente;
é
um contentamento descontente,
é
dor que desatina sem doer.
É
um não querer mais que bem querer;
é
um andar solitário entre a gente;
é
nunca contentar se de contente;
é
um cuidar que ganha em se perder.
É
querer estar preso por vontade;
é
servir a quem vence, o vencedor;
é
ter com quem nos mata, lealdade.
Mas
como causar pode seu favor
nos
corações humanos amizade,
se
tão contrário a si é o mesmo Amor?
(II)
Sete
anos de pastor Jacob servia
Labão,
pai de Raquel, serrana bela;
mas
não servia ao pai, servia a ela,
e
a ela só por prémio pretendia.
Os
dias, na esperança de um só dia,
passava,
contentando se com vê la;
porém
o pai, usando de cautela,
em
lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo
o triste pastor que com enganos
lhe
fora assi negada a sua pastora,
como
se a não tivera merecida;
começa
de servir outros sete anos,
dizendo:
—Mais servira, se não fora
para
tão longo amor tão curta a vida.
(III)
Transforma
se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar;
não
tenho, logo, mais que desejar,
pois
em mim tenho a parte desejada.
Se
nela está minha alma transformada,
que
mais deseja o corpo de alcançar?
Em
si sòmente pode descansar,
pois
consigo tal alma está liada.
Mas
esta linda e pura semideia,
que,
como um acidente em seu sujeito,
assi
co a alma minha se conforma,
está
no pensamento como ideia:
[e]
o vivo e puro amor de que sou feito,
como
a matéria simples busca a forma.
Os Lusíadas
No início desse poema narrativo, o narrador, no “Canto I”, faz a proposição (apresenta o tema e o herói):
As armas e os Barões assinalados
Que
da Ocidental praia Lusitana
Por
mares nunca de antes navegados
Passaram
ainda além da Taprobana,
Em
perigos e guerras esforçados
Mais
do que prometia a força humana,
E
entre gente remota edificaram
Novo
Reino, que tanto sublimaram;
E
também as memórias gloriosas
Daqueles
Reis que foram dilatando
A
Fé, o Império, e as terras viciosas
De
África e de Ásia andaram devastando,
E
aqueles que por obras valorosas
Se
vão da lei da Morte libertando,
Cantando
espalharei por toda parte,
Se
a tanto me ajudar o engenho e arte.
[...]
Vasco
da Gama, o forte Capitão,
Que
a tamanhas empresas se oferece,
De
soberbo e de altivo coração,
A
quem Fortuna sempre favorece,
Pera
se aqui deter não vê razão,
Que
inabitada a terra lhe parece.
Por
diante passar determinava,
Mas
não lhe sucedeu como cuidava.
Ainda no “Canto I”, é possível localizar a invocação e a dedicatória:
E vós, Tágides minhas, pois criado [ninfas do Rio Tejo]
Tendes
em mi um novo engenho ardente,
Se
sempre em verso humilde celebrado
Foi
de mi vosso rio alegremente,
Dai-me
agora um som alto e sublimado,
Um
estilo grandíloco e corrente,
Por
que de vossas águas Febo ordene
Que
não tenham inveja às de Hipocrene.
Dai-me
uma fúria grande e sonorosa,
E
não de agreste avena ou flauta ruda,
Mas
de tuba canora e belicosa,
Que
o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me
igual canto aos feitos da famosa
Gente
vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que
se espalhe e se cante no universo,
Se
tão sublime preço cabe em verso.
[...]
Vós, poderoso
Rei, cujo alto Império [D. Sebastião I
(1554-78), rei de Portugal]
O
Sol, logo em nascendo, vê primeiro,
Vê-o
também no meio do Hemisfério,
E
quando desce o deixa derradeiro;
Vós,
que esperamos jugo e vitupério
Do
torpe Ismaelita cavaleiro,
Do
Turco Oriental e do Gentio
Que
inda bebe o licor do santo Rio:
Inclinei
por um pouco a majestade
Que
nesse tenro gesto vos contemplo,
Que
já se mostra qual na inteira idade,
Quando
subindo ireis ao eterno templo;
Os
olhos da real benignidade
Ponde
no chão: vereis um novo exemplo
De
amor dos pátrios feitos valorosos,
Em
versos divulgado numerosos.
[...]
Mas,
enquanto este tempo passa lento
De
regerdes os povos, que o desejam,
Dai
vós favor ao novo atrevimento,
Pera
que estes meus versos vossos sejam,
E
vereis ir cortando o salso argento
Os
vossos Argonautas, por que vejam
Que
são vistos de vós no mar irado,
E
costumai-vos já a ser invocado.
A partir daí, do “Canto I” ao “Canto X”,
é narrada a viagem histórica de Vasco da Gama:
Está
a gente marítima de Luso
Subida
pela enxárcia, de admirada,
Notando
o estrangeiro modo e uso
E
a linguagem tão bárbara e enleada.
Também
o Mouro astuto está confuso,
Olhando
a cor, o trajo e a forte armada;
E,
perguntando tudo, lhe dizia
Se
porventura vinham de Turquia.
E
mais lhe diz também que ver deseja
Os
livros de sua Lei, preceito ou fé,
Pera
ver se conforme à sua seja,
Ou
se são dos de Cristo, como crê;
E
por que tudo note e tudo veja,
Ao
Capitão pedia que lhe dê
Mostra
das fortes armas de que usavam
Quando
c’os inimigos pelejavam.
Responde
o valoroso Capitão,
Por
um que a língua escura bem sabia:
—
“Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação
De
mi, da Lei, das armas que trazia.
Nem
sou da terra, nem da geração
Das
gentes enojosas de Turquia,
Mas
sou da forte Europa belicosa;
Busco
as terras da Índia tão famosa.
[...]
No “Canto X”, o epílogo (encerramento
da história):
Pera
servir-vos, braço às armas feito,
Pera
cantar-vos, mente às Musas dada;
Só
me falece ser a vós aceito,
De
quem virtude deve ser prezada.
Se
me isto o Céu concede, e o vosso peito
Digna
empresa tomar de ser cantada,
Como
a pressaga mente vaticina
Olhando
a vossa inclinação divina,
Ou
fazendo que, mais que a de Medusa,
A
vista vossa tema o monte Atlante,
Ou
rompendo nos campos de Ampelusa
Os
muros de Marrocos e Trudante,
A
minha já estimada e leda Musa
Fico
que em todo o mundo de vós cante,
De
sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem
à dita de Aquiles ter inveja.