20 setembro 2021

CAMÕES

 


·  Sonetos

(I)

Amor é um fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente,

é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;

é um andar solitário entre a gente;

é nunca contentar se de contente;

é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;

é servir a quem vence, o vencedor;

é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor

nos corações humanos amizade,

se tão contrário a si é o mesmo Amor?

 

(II)

Sete anos de pastor Jacob servia

Labão, pai de Raquel, serrana bela;

mas não servia ao pai, servia a ela,

e a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,

passava, contentando se com vê la;

porém o pai, usando de cautela,

em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos

lhe fora assi negada a sua pastora,

como se a não tivera merecida;

começa de servir outros sete anos,

dizendo: —Mais servira, se não fora

para tão longo amor tão curta a vida.

 

(III)

Transforma se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar;

não tenho, logo, mais que desejar,

pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,

que mais deseja o corpo de alcançar?

Em si sòmente pode descansar,

pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,

que, como um acidente em seu sujeito,

assi co a alma minha se conforma,

está no pensamento como ideia:

[e] o vivo e puro amor de que sou feito,

como a matéria simples busca a forma.


Os Lusíadas

No início desse poema narrativo, o narrador, no “Canto I”, faz a proposição (apresenta o tema e o herói):

As armas e os Barões assinalados

Que da Ocidental praia Lusitana

Por mares nunca de antes navegados

Passaram ainda além da Taprobana,

Em perigos e guerras esforçados

Mais do que prometia a força humana,

E entre gente remota edificaram

Novo Reino, que tanto sublimaram;

 

E também as memórias gloriosas

Daqueles Reis que foram dilatando

A Fé, o Império, e as terras viciosas

De África e de Ásia andaram devastando,

E aqueles que por obras valorosas

Se vão da lei da Morte libertando,

Cantando espalharei por toda parte,

Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

[...]

Vasco da Gama, o forte Capitão,

Que a tamanhas empresas se oferece,

De soberbo e de altivo coração,

A quem Fortuna sempre favorece,

Pera se aqui deter não vê razão,

Que inabitada a terra lhe parece.

Por diante passar determinava,

Mas não lhe sucedeu como cuidava.

 

Ainda no “Canto I”, é possível localizar a invocação e a dedicatória:

E vós, Tágides minhas, pois criado [ninfas do Rio Tejo]

Tendes em mi um novo engenho ardente,

Se sempre em verso humilde celebrado

Foi de mi vosso rio alegremente,

Dai-me agora um som alto e sublimado,

Um estilo grandíloco e corrente,

Por que de vossas águas Febo ordene

Que não tenham inveja às de Hipocrene.

 

Dai-me uma fúria grande e sonorosa,

E não de agreste avena ou flauta ruda,

Mas de tuba canora e belicosa,

Que o peito acende e a cor ao gesto muda;

Dai-me igual canto aos feitos da famosa

Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;

Que se espalhe e se cante no universo,

Se tão sublime preço cabe em verso.

[...]

Vós, poderoso Rei, cujo alto Império [D. Sebastião I (1554-78), rei de Portugal]

O Sol, logo em nascendo, vê primeiro,

Vê-o também no meio do Hemisfério,

E quando desce o deixa derradeiro;

Vós, que esperamos jugo e vitupério

Do torpe Ismaelita cavaleiro,

Do Turco Oriental e do Gentio

Que inda bebe o licor do santo Rio:

 

Inclinei por um pouco a majestade

Que nesse tenro gesto vos contemplo,

Que já se mostra qual na inteira idade,

Quando subindo ireis ao eterno templo;

Os olhos da real benignidade

Ponde no chão: vereis um novo exemplo

De amor dos pátrios feitos valorosos,

Em versos divulgado numerosos.

[...]

Mas, enquanto este tempo passa lento

De regerdes os povos, que o desejam,

Dai vós favor ao novo atrevimento,

Pera que estes meus versos vossos sejam,

E vereis ir cortando o salso argento

Os vossos Argonautas, por que vejam

Que são vistos de vós no mar irado,

E costumai-vos já a ser invocado.

 

A partir daí, do “Canto I” ao “Canto X”, é narrada a viagem histórica de Vasco da Gama:

Está a gente marítima de Luso

Subida pela enxárcia, de admirada,

Notando o estrangeiro modo e uso

E a linguagem tão bárbara e enleada.

Também o Mouro astuto está confuso,

Olhando a cor, o trajo e a forte armada;

E, perguntando tudo, lhe dizia

Se porventura vinham de Turquia.

 

E mais lhe diz também que ver deseja

Os livros de sua Lei, preceito ou fé,

Pera ver se conforme à sua seja,

Ou se são dos de Cristo, como crê;

E por que tudo note e tudo veja,

Ao Capitão pedia que lhe dê

Mostra das fortes armas de que usavam

Quando c’os inimigos pelejavam.

 

Responde o valoroso Capitão,

Por um que a língua escura bem sabia:

— “Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação

De mi, da Lei, das armas que trazia.

Nem sou da terra, nem da geração

Das gentes enojosas de Turquia,

Mas sou da forte Europa belicosa;

Busco as terras da Índia tão famosa.

[...]

 

No “Canto X”, o epílogo (encerramento da história):

Pera servir-vos, braço às armas feito,

Pera cantar-vos, mente às Musas dada;

Só me falece ser a vós aceito,

De quem virtude deve ser prezada.

Se me isto o Céu concede, e o vosso peito

Digna empresa tomar de ser cantada,

Como a pressaga mente vaticina

Olhando a vossa inclinação divina,

 

Ou fazendo que, mais que a de Medusa,

A vista vossa tema o monte Atlante,

Ou rompendo nos campos de Ampelusa

Os muros de Marrocos e Trudante,

A minha já estimada e leda Musa

Fico que em todo o mundo de vós cante,

De sorte que Alexandro em vós se veja,

Sem à dita de Aquiles ter inveja.

 

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