Grande
Edgar
Já deve ter
acontecido com você.
- Não está se
lembrando de mim?
Você não está se
lembrando dele. Procura, freneticamente, em todas as fichas armazenadas na
memória o rosto dele e o nome correspondente, e não encontra. E não há tempo
para procurar
no arquivo desativado. Ele está ali, na
sua frente, sorrindo, os olhos iluminados, antecipando sua resposta. Lembra ou
não lembra?
Neste ponto, você tem
uma escolha. Há três caminhos a seguir.
Um, curto, grosso e
sincero.
- Não.
Você não está se
lembrando dele e não tem por que esconder isso. O “Não” seco pode até insinuar
uma reprimenda à pergunta. Não se faz uma pergunta assim, potencialmente
embaraçosa, a ninguém, meu caro. Pelo menos entre pessoas educadas. Você deveria
ter vergonha. Passe bem. Não me lembro de você e mesmo que lembrasse não diria.
Passe bem. Outro caminho, menos honesto mas igualmente razoável, é o da
dissimulação.
- Não me diga. Você é
o... o...
“Não me diga”, no
caso, quer dizer “Me diga, me diga”. Você conta com a piedade dele e sabe que
cedo ou tarde ele se identificará, para acabar com sua agonia. Ou você pode
dizer algo como:
- Desculpe, deve ser
a velhice, mas...
Este também é um
apelo à piedade. Significa “não tortura um pobre desmemoriado, diga logo quem
você é!”. É uma maneira simpática de você dizer que não tem a menor ideia de
quem ele é, mas que isso não se deve a insignificância dele e sim a uma
deficiência de neurônios sua.
E há um terceiro
caminho. O menos racional e recomendável. O que leva à tragédia e à ruína. E o
que, naturalmente, você escolhe.
- Claro que estou me
lembrando de você!
Você não quer
magoá-lo, é isso! Há provas estatísticas de que o desejo de não magoar os
outros está na origem da maioria dos desastres sociais, mas você não quer que
ele pense que passou pela sua vida sem deixar um vestígio sequer. E, mesmo, depois
de dizer a frase não há como recuar. Você pulou no abismo. Seja o que Deus
quiser. Você ainda arremata:
- Há quanto tempo!
Agora tudo dependerá
da reação dele. Se for um calhorda, ele o desafiará.
- Então me diga quem
sou.
Neste caso você não
tem outra saída senão simular um ataque cardíaco e esperar, e falsamente
desacordado, que a ambulância venha salvá-lo. Mas ele pode ser misericordioso e
dizer apenas:
- Pois é.
Ou:
- Bota tempo nisso.
Você ganhou tempo
para pesquisar melhor a memória. Quem será esse cara, meu Deus? Enquanto
resgata caixotes com fichas antigas no meio da poeira e das teias de aranha do fundo
do cérebro, o mantém à distância com frases neutras como jabs verbais.
- Como cê tem
passado?
- Bem, bem.
- Parece mentira.
- Puxa.
(Um colega da escola.
Do serviço militar. Será um parente? Quem é esse cara, meu Deus?)
Ele está falando:
- Pensei que você não
fosse me reconhecer...
- O que é isso?!
- Não, porque a gente às vezes se decepciona com
as pessoas.
- E eu ia esquecer de
você? Logo você?
- As pessoas mudam.
Sei lá.
- Que ideia. (é o Ademar! Não, o Ademar já
morreu. Você foi ao enterro dele. O... o... como era o nome dele? Tinha uma perna
mecânica. Rezende! Mas como saber se ele tem uma perna mecânica? Você pode
chutá-lo amigavelmente. E se chutar a perna boa? Chuta as duas. “Que bom
encontrar você!” e paf, chuta uma
perna. “Que saudade!” e paf, chuta a
outra. Quem
é esse cara?)
- É incrível como a
gente perde contato.
- É mesmo.
Uma tentativa. É um
lance arriscado, mas nesses momentos deve-se ser audacioso.
- Cê tem visto alguém
da velha turma?
- Só o Pontes.
- Velho Pontes!
(Pontes. Você conhece algum Pontes? Pelo menos agora tem um nome com o qual
trabalhar. Uma segunda ficha para localizar no sótão. Pontes, Pontes...)
- Lembra do Croarê?
- Claro!
- Esse eu também
encontro, às vezes, no tiro ao alvo.
- Velho Croarê.
(Croarê. Tiro ao alvo. Você não conhece nenhum Croarê e nunca fez tiro ao alvo.
É inútil. As pistas não estão ajudando. Você decide esquecer toda cautela e partir
para um lance decisivo. Um lance de desespero. O último, antes de apelar para o
enfarte.)
- Rezende...
- Quem?
Não é ele. Pelo menos
isto está esclarecido.
- Não tinha um Rezende na turma?
- Não me lembro.
- Devo estar
confundindo.
Silêncio. Você sente
que está prestes a ser desmascarado.
Ele fala:
- Sabe que a Ritinha
casou?
- Não!
- Casou.
- Com quem?
- Acho que você não
conheceu. O Bituca. (Você abandonou todos os escrúpulos. Ao diabo com a
cautela. Já que o vexame é inevitável, que ele seja total, arrasador. Você está
tomado por uma espécie de euforia terminal. De delírio do abismo. Como que não
conhece o Bituca?)
- Claro que conheci!
Velho Bituca...
- Pois casaram.
É a sua chance. É a
saída. Você passou ao ataque.
- E não avisou nada?
- Bem...
- Não. Espera um
pouquinho. Todas essas coisas acontecendo, a Ritinha casando com o Bituca, o
Croarê dando tiro, e ninguém me avisa nada?
- É que a gente
perdeu contato e...
- Mas meu nome tá na
lista meu querido. Era só dar um telefonema. Mandar um convite.
- É...
- E você acha que eu
ainda não vou reconhecer você. Vocês é que se esqueceram de mim.
- Desculpe, Edgar. É
que...
- Não desculpo não.
Você tem razão. As pessoas mudam. (Edgar. Ele chamou você de Edgar. Você não se
chama Edgar. Ele confundiu você com outro. Ele também não tem a mínima ideia de
quem você é. O melhor é acabar logo com isso. Aproveitar que ele está na
defensiva. Olhar o relógio e fazer cara de “Já?!”)
- Tenho que ir. Olha,
foi bom ver você, viu?
- Certo, Edgar. E
desculpe, hein?
- O que é isso?
Precisamos nos ver mais seguido.
- Isso.
- Reunir a velha
turma.
- Certo.
- E olha, quando
falar com a Ritinha e o Manuca...
- Bituca.
- E o Bituca, diz que
eu mandei um beijo. Tchau, hein?
- Tchau, Edgar!
Ao se afastar, você
ainda ouve, satisfeito, ele dizer “Grande Edgar”. Mas jura que é a última vez
que fará isso. Na próxima vez que alguém lhe perguntar “Você está me
reconhecendo?” não dirá nem não. Sairá correndo.
VERISSIMO, Luis Fernando. As mentiras que os homens contam. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001.
1. Releia o quarto parágrafo e faça o
que se pede.
a) Copie-o nas linhas abaixo. Em
seguida, identifique seu predicado e classifique-o.
b) Agora, destaque o núcleo desse predicado.
2. A seguir, são reproduzidas algumas orações do texto. Sublinhe o predicado de cada oração, classifique-o e copie seu(s) núcleo(s).
a) Você pulou no abismo.
b) Há quanto tempo!
c) As pistas não estão ajudando.
d) o vexame é inevitável
e) você ainda ouve, satisfeito
3. Podemos dizer que, nessa crônica, predomina o uso de predicado verbal. Por quê?
4. Observe o primeiro verso de cada uma
das estrofes.
a) Que função sintática desempenham os
termos meu abismo, meu castigo e meu destino?
b) Qual é o sujeito a que se referem os
três termos?
c) Que outros termos do poema também
desempenham a mesma função sintática do item “a” e se referem ao mesmo sujeito?
d) Como se classificam os predicados
dessas orações?
a) Qual é a predicação do verbo deixar?
b) Qual é o complemento verbal do verbo deixar?
c) A que palavras os adjetivos surdo e cego
se referem?
Logo, que função sintática desempenham?
d) Portanto, qual é o tipo de predicado
dessa oração?