10 junho 2023

VOZES DA LITERATURA IV

Cap 4 - Vozes femininas na literatura brasileira

 

EIXOS ESTRUTURANTES:

Processo criativo

Mediação e intervenção sociocultural

 

HABILIDADES TRABALHADAS:

EMIFCG04 • EMIFLGG04 • EMIFLGG05 • EMIFLGG08

 

 

>> Por trás do texto

Este módulo é dedicado à literatura criada por escritoras brasileiras: vozes femininas que, no processo de evolução de nossa sociedade, têm buscado meios de afirmação de sua arte e espaço de publicação e divulgação, geralmente limitados por obstáculos impostos pelo modelo patriarcal dominante.

Para refletir sobre o tema, e partindo do princípio de que a arte é uma forma de expressão de conceitos e valores sociais, leia um trecho do romance Úrsula, escrito por Maria Firmina dos Reis e publicado em 1859.



Com base na biografia de Maria Firmina dos Reis e na interpretação do trecho do romance Úrsula, reflita sobre as seguintes questões:

·   Como o trecho da obra Úrsula aborda a questão da escravidão e a liberdade dos escravizados?

·   Quais foram os desafios enfrentados por Maria Firmina dos Reis como escritora negra no século XIX no Brasil?

Neste módulo, você poderá ler e aprofundar seus conhecimentos sobre algumas vozes literárias femininas na literatura brasileira.

 

>> Para contextualizar

O silenciamento das mulheres na sociedade e na literatura

Por que se fala de literatura feminina? Ou feminista? Essas designações são um recorte dentro da produção literária nacional. Surgem da necessidade de apontar de modo específico esse segmento, em decorrência do silenciamento sociocultural que historicamente marginalizou as mulheres brasileiras, especialmente as mulheres brasileiras negras.

Nesse processo de silenciamento, houve resistência e pioneirismos. Um exemplo foi a educadora e escritora Nísia Floresta (1810-1885), considerada uma das primeiras autoras a defender ideias feministas no Brasil. Nascida em Papari, no Rio Grande do Norte (cidade que hoje tem o seu nome), foi redatora do periódico O espelho das brasileiras, em que escreveu sobre as condições sociais precárias das mulheres. Em seu primeiro livro, Direitos das mulheres e injustiça dos homens (1832), trata da importância do acesso à instrução e ao trabalho. Em 1838, ainda em tempos do reinado de dom Pedro II, a educadora abriu uma escola para meninas. Nísia também participou ativamente das campanhas abolicionista e republicana.

Ainda no século XIX, dentre alguns outros nomes, destaca-se a professora e escritora maranhense Maria Firmina dos Reis (1822-1917). Considerada a primeira romancista brasileira, tinha presença constante na imprensa local. O romance romântico Úrsula, publicado em 1859, é uma obra revolucionária para seu tempo: escrito por uma mulher negra, denuncia a violência sofrida pelos africanos escravizados, focalizando ideais abolicionistas.

Numa sociedade que acreditava na suposta inferioridade intelectual da mulher, vista apenas como símbolo de amor e beleza ou como objeto de desejo, mesmo aquelas que tinham acesso à educação e a vontade de fazer literatura eram vítimas de preconceito e falta de reconhecimento. Por isso, muitas delas utilizavam o recurso do anonimato. Maria Firmina publicou poesia, ficção, crônicas e até enigmas e charadas, sob o pseudônimo de “uma maranhense”.

Ao longo do processo de desenvolvimento da sociedade brasileira, muitos autores ganharam espaço e destaque até fora do país, principalmente a partir do século XIX, após a Proclamação da Independência (1822). Contudo, poucas autoras trilharam o mesmo caminho: vozes femininas conquistaram algum espaço na produção artística nacional, principalmente a partir do século XX, com o Modernismo.

Em 1922, durante a Semana de Arte Moderna, evento que entrou para a história do país pelo espírito de ruptura e renovação que representou, houve a participação de quatro artistas brasileiras: Anita Malfatti (pintora), Regina Graz (pintora e tapeceira), Zina Aita (pintora e ceramista) e Guiomar Novaes (pianista). A pintora Tarsila do Amaral, que não esteve presente por estar fora do país na época do evento, tornou-se um dos grandes nomes do movimento, assim como a escritora e ativista feminista Pagu (Patrícia Galvão).

No mundo moderno, complexo e palco de muitas transformações na sociedade, a literatura, assim como outras linguagens da arte, também problematiza as relações sociais e as tensões existenciais. A libertação do artista diante das convenções, conquista do Modernismo, renova a proposta de uma estética de apropriação do real. Nesse contexto, a literatura escrita por mulheres ganhou espaço e foi conquistando projeção nacional, principalmente a partir da década de 1940, como se vê, por exemplo, na obra de Clarice Lispector.

A escritora mergulhou de maneira profunda no universo feminino, explorando a complexidade psicológica de suas protagonistas. O estilo intimista da literatura de Clarice convida o leitor a adentrar no fluxo de consciência de suas personagens, diminuindo ou até mesmo apagando as fronteiras entre a voz do narrador e a de personagens. Com a mesma complexidade narrativa, cria metalinguagem, explorando o próprio processo criativo.

É assim, por exemplo, que a escritora Clarice apresenta a nordestina Macabea, em A hora da estrela.

 


Desde o romance Perto do Coração Selvagem, de 1944, Clarice Lispector torna-se mestre na chamada “prosa intimista”. A escritora rompe com a sequência linear da narrativa que caracterizou o conto brasileiro no século XIX e faz predominar as impressões e sensações da mente humana. Muitos de seus personagens não têm nome, mas são tipos únicos. Seus contos manifestam o momento da epifania – da revelação, da iluminação –, quando, por meio de um súbito estranhamento sentido pelos personagens, eles mergulham num fluxo de consciência e emergem diferentes em relação a si mesmos e ao mundo que os rodeia.

Assim, extrapolando a narrativa de situações cotidianas, Clarice Lispector observa, revela e questiona a realidade humana, o sentido da existência e os papéis sociais da mulher. Em sua literatura, sobressai um olhar diferente sobre o universo feminino, divergente do padrão estereotipado predominante nas narrativas até então, em que a mulher aceitava passivamente o papel de mãe, esposa ou restrito à vida doméstica. Ao se debruçar sobre as características psicológicas de suas complexas personagens, a autora mostra seus anseios e questionamentos diante das condições sociais que enfrenta.

A primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras (1977) foi, também, uma escritora cujos personagens femininos são marcantes e desconstroem a imagem estereotipada da mulher de seu tempo: Rachel de Queiroz.

Os romances e as crônicas de Rachel de Queiroz giram em torno de temas e questões sociais nordestinas ou do cotidiano carioca. A escritora se inspira em realidades concretas para criar um universo de denúncia social de grande força dramática. Alguns de seus romances se popularizaram ainda mais ao serem adaptados para novelas ou minisséries televisivas, como foi o caso dos romances Três Marias (1939) e Memorial de Maria Moura (1992), exibidos em 1980 e 1994, respectivamente.

Memorial de Maria Moura, obra ambientada no sertão nordestino de século XIX, é um romance que discute o patriarcalismo e ilustra a transgressão do papel da mulher. A protagonista, Maria Moura, ao se vestir como homem e lutar como uma cangaceira, infringe os valores vigentes da sociedade sertaneja da época.

O segundo capítulo desse romance revela o conflito que move a personagem Maria Moura a buscar vencer o preconceito, levando o leitor a conhecê-la pela força feminina. Maria Moura sentia-se ameaçada por Liberato, seu padrasto, com quem passou a viver maritalmente após a morte da mãe. Ao perceber que seria vítima de uma armadilha, quando Liberato pediu-lhe para assinar uma procuração que lhe daria propriedade das terras a que tinha direito por herança, Maria Moura planeja e executa seu assassinato. Dessa complicação narrativa nasce o espírito de transgressão de Maria Moura, que se recusa a sujeitar-se ao mundo masculino de seu tempo, passando a impor seu caráter forte e sua liderança.

Assim como em Clarice Lispector, na escrita de Rachel de Queiroz observa-se um estilo autoral que revela profunda observação psicológica das personagens femininas, além da mencionada perspectiva social. O destino da mulher na sociedade foi tema recorrente em sua obra. Em seu primeiro romance, O Quinze, por exemplo, a personagem Conceição sai de uma fazenda no interior do Ceará para estudar em Fortaleza e trabalhar como professora. Na capital, mantém-se solteira (opção que para uma mulher era sinônimo de rebeldia e até vergonha) e torna-se voluntária em local que recebia famílias do sertão cearense vítimas da seca, tema central do romance.

Muitas outras escritoras também desafiaram o mundo literário brasileiro, como a romancista Nélida Piñon, a primeira mulher a se tornar presidente da Academia Brasileira de Letras, e a poetisa, ficcionista e dramaturga Hilda Hilst, cujas obras expressam vozes femininas e sua relação com o desejo e a sexualidade, temas ainda considerados tabus na sociedade. As obras dessas escritoras representam um importante passo para que o silenciamento das mulheres, tanto na vida social quanto na produção artística, seja discutido mais amplamente e para que se combata a discriminação e a desigualdade motivadas pelo gênero.

 

Analisando o texto

1.   Para ampliar suas reflexões e conhecer a literatura de outras vozes literárias femininas do século XX, leia o trecho a seguir, do romance Podem me chamar de louca, de Hilda Hilst, e responda às questões que seguem.

 


a) Identifique, no trecho, formas verbais de valor imperativo e analise o efeito de sentido que criam no contexto.

b) Explique a ironia proposta pela autora.



Com base na leitura do artigo, reflita sobre as seguintes questões:

1. Segundo a pesquisa, quem eram as “modernistas”?

2. De que modo alguns veículos de comunicação da época reforçavam o preconceito contra a emancipação feminina?

3. Faça uma pesquisa sobre os movimentos de emancipação feminina do século XX e as conquistas que, de algum modo, resultaram dessas mobilizações. Em seguida, escreva um resumo das informações pesquisadas e faça comentários defendendo seu ponto de vista sobre essas conquistas. Ao final, compartilhe sua pesquisa e suas opiniões com os colegas.

 

>> Para contextualizar

Memórias literárias femininas

A crítica literária contemporânea aponta para o crescimento da quantidade de publicações de gêneros textuais memorialísticos, como biografias, autobiografias, diários, dentre outros, principalmente a partir da década de 1980.

Na produção literária feminina, esse deslocamento temporal e espacial é especialmente importante, porque representa um caminho para a recuperação do passado e a construção, no presente, de uma história futura em que a condição de servilidade e marginalidade seja superada.

Esse contexto também está diretamente relacionado ao processo de transformação social vivido pelas mulheres brasileiras, principalmente no século XX, quando a sociedade passou a reconhecer o lugar social da mulher e a importância de combater desigualdades e violências históricas.

Para identificar traços desse discurso memorialístico, leia o poema a seguir.

 


Os versos revelam um eu lírico que aprendeu a valorizar as próprias raízes culturais, entre as quais estão crenças religiosas tanto de origem africana quanto católicas, fruto de uma sociedade marcada pelo sincretismo religioso: “Nas contas de meu rosário eu canto Mamãe Oxum e falo / padres-nossos, ave-marias.”

 

Sincretismo é a junção de traços culturais, doutrinas ou ideologias diferentes. Em algumas situações, essa interseção dá origem a algo novo, seja no campo da filosofia, da religião, da política, etc.

 

Pode-se depreender do texto, também, a valorização do passado e da memória como instrumento de exposição de problemas sociais e denúncia. Nos versos iniciais, o eu lírico encontra “na memória mal adormecida” imagens que marcaram a infância, entre as quais a do preconceito contra as meninas negras:

Do meu rosário eu ouço os longínquos batuques do

meu povo

e encontro na memória mal adormecida

as rezas dos meses de maio de minha infância.

As coroações da Senhora, onde as meninas negras,

apesar do desejo de coroar a Rainha

tinham de se contentar em ficar ao pé do altar

lançando flores.

[...]

As lembranças resgatas pela memória ajudam a contar sobre o passado de fome e trabalho (na terra, nas fábricas, nas casas) e é um convite à reflexão sobre a condição da mulher oprimida pelos valores de uma sociedade racista e patriarcal. A memória é, assim, uma voz coletiva:

As contas do meu rosário fizeram calos nas minhas mãos,

pois são contas do trabalho na terra, nas fábricas, nas casas,

nas escolas, nas ruas, no mundo.

As contas do meu rosário são contas vivas.

[...]

Quando debulho as contas de meu rosário,

eu falo de mim mesma em outro nome...

Além disso, o rosário/poema é uma representação do próprio percurso trilhado pela escritora. Nos versos de “Meu rosário”, por meio da metalinguagem, apresenta-se uma voz poética que quer compartilhar com seus interlocutores vivências de uma dura realidade social, na esperança de que, no futuro, ela seja superada.

[...]

Nas contas de meu rosário eu teço entumecidos

sonhos de esperanças.

Nas contas do meu rosário eu vejo rostos escondidos

por visíveis e invisíveis grades

[...]

E neste andar de contas-pedras,

o meu rosário se transmuda em tinta,

me guia o dedo,

me insinua a poesia.

[...]

Metalinguagem é um discurso marcado pela intenção de refletir sobre o próprio uso da linguagem. Assim, por exemplo, um poema tematiza o processo de criação poética ou um romancista conta sobre a construção do perfil de determinado personagem ao mesmo tempo que narra uma história.

Passado, presente e futuro caminham juntos na literatura feminina negra, marcada pelo engajamento social. Esse discurso pode ser observado, também, na literatura escrita por Carolina Maria de Jesus, escritora que se tornou conhecida com a publicação de Quarto de despejo: diário de uma favelada. O diário é considerado uma importante referência para a chamada literatura periférica ou marginal, pelo fato de ser uma produção independente, descoberta por acaso por um jornalista, produzida à margem dos cânones do segmento editorial.

Em seu primeiro livro, a escritora conta sua luta para sobreviver na cidade de São Paulo, relatando vivências reais como catadora de lixo em uma favela. Carolina de Jesus é, ao mesmo tempo, o sujeito e o objeto do relato, característica própria desse gênero textual. As páginas do diário são o testemunho da autora que, ao registrar o dia a dia, reflete sobre problemas sociais e existenciais, manifestando seus sentimentos e pensamentos diante da realidade vivida pelos moradores da favela do Canindé. Além do registro do cotidiano de miséria a que ela é submetida, o diário revela uma vida de privação não somente material, mas também existencial, estilo que se configura ainda mais no segundo diário, Casa de alvenaria. Leia:

 


 Ao retratar o cotidiano de miséria e marginalização das pessoas com quem convive – seja na favela do Canindé, na cidade de Osasco (sua segunda moradia) ou no bairro de Santana (onde compra uma casa com o dinheiro recebido pelos diários), cenário em que se situam os relatos registrados em diários –, a escritora apresenta o olhar da mulher negra, vítima de preconceito e exclusão.

No trecho reproduzido anteriormente, assim como em todos os seus livros, Carolina demonstra a dificuldade que é imposta à mulher negra e não casada em uma sociedade racista e machista. Além disso, apesar de viver em um ambiente no qual as pessoas geralmente têm baixa escolaridade, revela-se preocupada com a educação formal dos filhos, por entender que essa é uma condição necessária para sair da marginalidade.

Uma característica que chama a atenção nos diários de Carolina de Jesus são os desvios gramaticais, propositalmente deixados na edição do texto. Mesmo tendo frequentado a escola por apenas dois anos, quando foi alfabetizada, Carolina revela, em seu texto, a preocupação de se apropriar do domínio da norma-padrão da língua. A busca de uma expressão escrita mais formal nasce de sua paixão pela leitura. Essa questão linguística, contudo, não foi um obstáculo para a criação da autora: os diários, além de representarem um diálogo interior necessário para a compreensão de si mesma, são também fruto da percepção de que contar a própria história é um meio de dar visibilidade a injustiças sociais.

Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo são vozes literárias que ecoam ideais de mulheres, especialmente de mulheres negras, que buscam compreender a própria identidade, apropriar-se dela e lutar pelo direito de se expressar. Nesse sentido, a autora de “Meu rosário” costuma dizer que sua criação pode ser lida como uma “ficção da memória”, por ser tênue o limite entre a invenção e as realidades em que se inspira para criar sua literatura.

Esse novo estilo literário tem sido designado pela crítica literária como autoficção. Veja:

As escritas biográficas e autobiográficas conheceram um crescimento exponencial desde os anos 1980 [...], quando começaram a surgir novas variações de escritas de si. A maneira de construir e encarar as categorias de autobiografia e ficção sofreu grandes transformações, com a proliferação de relatos e romances nos quais as fronteiras entre elas parecem se desvanecer. O surgimento do termo “autoficção” contribuiu para embaralhar ainda mais a questão, ao juntar, de maneira paradoxal, numa mesma palavra, duas formas de escrita que, em princípio, deveriam se opor.

[...] a autoficção se contrapõe à autobiografia clássica, que pessoas famosas escrevem no final de suas vidas, em belo estilo, tentando dar conta de uma vida inteira. A autoficção seria um romance autobiográfico pós-moderno, com formatos inovadores [...].

FIGUEIREDO, Eurídice. Mulheres no espelho: autobiografia, ficção e autoficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013. p. 13 e 61.

 

Assim, ao criarem um gênero híbrido, em que as histórias inventadas são, ao mesmo tempo, memórias, essas escritoras conquistam um espaço mais livre para expor a si mesmas e para tratar de temáticas sociais que são tabus, como a sexualidade feminina, o estupro e a violência gerada por preconceito de gênero, dentre outros temas.

 

 

Analisando o texto

1. Releia o poema “Meu Rosário”, de Conceição Evaristo, para responder às seguintes questões:

a) Localize o título do livro em que o texto foi publicado. O que se pode inferir sobre o conjunto de poemas contidos na obra?

b) Em artigo publicado sobre a obra da autora, os pesquisadores Eduardo de Assis Duarte e Elisângela Lopes Fialho afirmam: “A poesia de Conceição Evaristo enfatiza a abordagem dos dilemas identitários dos afro-descendentes em busca de afirmação numa sociedade que os exclui e, ao mesmo tempo, camufla o preconceito de cor.” Relacione essa afirmação ao poema.

c) Selecione, no poema, alguns versos de que você gostou mais e comente o porquê de sua escolha.

2. Sobre a obra de Carolina Maria de Jesus, responda:

a) Após ler trechos do diário da escritora, qual foi sua primeira impressão ao observar os desvios gramaticais presentes na escrita?

b) Leia a explicação sobre “preconceito linguístico”:

O preconceito linguístico é a conduta de uma pessoa que rejeita um modo de falar que é diferente do seu. Comumente, esse preconceito não é dirigido apenas à língua, mas à pessoa que

a fala. Já que a língua faz parte da identidade de uma pessoa, rejeitá-la é desaceitar a comunidade que ela integra.

Responda: de que modo se pode relacionar essa concepção da língua enquanto instrumento de poder com os diários escritos por Carolina Maria de Jesus?


Uma nova geração de escritoras

O processo de evolução intelectual e cultural do país marginalizou minorias que não correspondiam ao perfil hegemônico, como ocorreu no segmento editorial e nos meios de comunicação em geral. Contudo, o mesmo mercado, que buscou conservar discursos dominantes e sujeitou determinados segmentos sociais ao silenciamento, nas últimas décadas, tem aberto espaço para uma nova geração de artistas.

Apesar de marcado por uma evidente desigualdade de raça e de gênero, o campo artístico-literário brasileiro tem, aos poucos, criado oportunidades para escritoras pertencentes a grupos minoritários publicarem e divulgarem suas obras, o que também tem sido impulsionado pelos concursos literários nacionais.

A diversidade é uma das marcas dessa nova geração de escritoras em romances, contos e poesias. Dos mais variados lugares têm surgido potentes vozes, fundamentais para descentralizar e diversificar a literatura feita no país. Nesse cenário, ganham expressão autoras como as paulistanas Adriana Lisboa, Maria Valéria Rezende, Aline Bei e Vanessa Bárbara; as cariocas Noemi Jaffe e Heloísa Seixas; a pernambucana Débora Ferraz; a mineira Ana Maria Gonçalves; a cearense Jarid Arraes; a gaúcha Marcia Tiburi; a mato-grossense Ryane Leão; a rondoniana Julie Dorrico; dentre outras.

Agora, conheça um pouco mais sobre a escrita da nova literatura feminina.

No conto “Com gás ou sem”, presente no livro Não está mais aqui quem falou, a escritora Noemi Jaffe constrói uma estrutura linguística interrogativa, por meio da qual busca definir o que é ser mulher. No texto, a autora leva o leitor a questionar o senso comum relativo aos papéis femininos ao indagar sobre as concepções estereotipadas e machistas que ainda predominam em nossa sociedade: toda mulher quer ter filhos? A mulher nasceu para ser mãe? Afinal, o que quer uma mulher?

A pernambucana Débora Ferraz é outro nome que desponta na literatura feminina contemporânea. O seu premiado romance Enquanto Deus não está olhando foi escrito em primeira pessoa, no qual a narrativa é feita pela protagonista Érica Valentim, uma jovem pintora de um pouco mais de 20 anos. A personagem busca o pai, que sumiu enquanto estava internado em tratamento para alcoolismo.

O tom introspectivo da escrita de Débora Ferraz situa sua obra na narrativa psicológica. Chama a atenção, também, o trabalho com a linguagem literária, que mistura e integra à narrativa traços de diferentes gêneros textuais em que se destaca a enumeração dos conflitos mentais vividos pela personagem ao saber do sumiço do pai. Essa estrutura textual quebra a linearidade da narrativa, absorvendo caracte­rísticas que remetem a um roteiro cinematográfico.

O município de Juazeiro do Norte, na região do Cariri, no Ceará, revelou para a literatura nacional a escritora Jarid Arraes. Os romances Corpo desfeito e Redemoinho em dia quente foram vencedores ou finalistas em várias premiações, como o Prêmio Biblioteca Nacional, o Prêmio Jabuti e o APCA de Literatura (Associação Paulista de Críticos de Arte). Jarid Arraes é também cordelista, tendo mais de setenta cordéis publicados que contam lendas africanas e questões importantes da nossa sociedade, além do livro Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, que resgata a memória de mulheres que levantaram a voz contra a injustiça, reivindicaram espaço político e lutaram por liberdade.

 

 

Mulheres negras e indígenas na literatura contemporânea

A história sociocultural brasileira que sujeitou as escritoras a uma política de apagamento cultural foi ainda mais contundente em relação às mulheres negras e indígenas. Para refletir sobre essa questão, leia trechos de um artigo que contém depoimentos de escritoras negras, como Conceição Evaristo, Meimei Barros e Dalva Martins de Almeida, que se destacam na produção literária contemporânea

A mesma sociedade que discriminou culturalmente escritoras negras também oprimiu vozes femininas descendentes dos povos originários. Contudo, hoje se observa o esforço de escritoras, lideranças e artistas indígenas para reescreverem a própria história, ignorada pelo discurso de sociedade hegemônica que dominou os relatos e documentos oficiais. Sobre isso, leia trechos de um artigo, escrito por Julie Dorrico e Paolla Andrade Vilela, pertencente ao povo Puri. 




Mulheres Negras – Literatura, Substantivo Feminino

Se ao longo da história humana a jornada da mulher foi marcada pela invisibilidade, quando se trata da mulher negra, o problema é ainda mais acentuado. Isso é ainda reforçado pela ampla exposição à violência e à humilhação, oriundas do processo de escravidão e racismo no Brasil. A sociedade brasileira foi construída sob um imaginário que coloca negras e negros em um lugar de inferioridade, isso é fato. [...]

As escritoras negras brasileiras empenham suas energias em criar uma literatura que abale o discurso hegemônico, a fim de descolonizar os paradigmas da sociedade em que vivemos.

Elas colocam em pauta os contextos sociais, culturais, históricos e políticos para discutir a violência, a pobreza, o racismo e o corpo negro, especialmente o corpo da mulher negra que é objetificado, hipersexualizado e superexposto nas mídias.

Nesse sentido, muitas autoras quebram com o conceito vigente, como Conceição Evaristo, que traz em seus livros personagens negras que são independentes, inconformadas e insubmissas.

 


Analisando o texto

1. Sobre o texto “Mulheres Negras – Literatura, Substantivo Feminino”, responda:

a) Releia o trecho: “as escritoras negras brasileiras empenham suas energias em criar uma literatura que abale o discurso hegemônico, a fim de descolonizar os paradigmas da sociedade em que vivemos”. A qual discurso hegemônico se faz referência? E de que modo esse ponto de vista gera preconceito social?

b) Nos depoimentos de algumas escritoras, observa-se a preocupação de criar uma literatura comprometida com suas origens negras. Explique a importância da ancestralidade para essas autoras.

2. No texto “Autoras indígenas e o mundo literário”, a escritora Paolla Andrade Vilela destaca a importância de haver espaço para vozes femininas de todas as camadas sociais, apontando principalmente as mulheres descendentes dos povos originários. Explique o ponto de vista defendido pela autora.

3. A seu ver, de que modo a difusão dos problemas sociais vividos pela população afrodescendente e a difusão da cultura negra por meio da literatura favorece uma mudança social? Justifique sua resposta.

 

>>> Da teoria à prática

Registrando memórias

Neste capítulo, ao estudar autoras e obras representativas da produção literária feminina, observamos que o tom memorialístico é uma das importantes marcas dessa literatura. O caráter autobiográfico dos textos é um recurso por meio do qual as escritoras refletem sobre a própria identidade.

Propomos, então, que a turma produza um videorrelato, ou seja, um relato pessoal coletivo gravado em vídeo. Para isso, siga as etapas.

 

Etapa 1

Este relato em vídeo é um pouco diferente de um relato escrito, não apenas pelo suporte a ser usado, mas por registrar a vida de várias pessoas, em vez de uma só. Lembrem-se das características mais comuns desse tipo de texto, como o uso da primeira pessoa do discurso e de marcadores de tempo e espaço, a abordagem subjetiva, dentre outras.

Reúnam-se em grupos de quatro ou cinco alunos e comecem o planejamento. Escolham um aspecto da vida de vocês para registrar: os sonhos pessoais, a amizade, a vida escolar, a família, o processo de amadurecimento, a dúvida sobre a carreira profissional, etc. Pensem em um tema de interesse do grupo e que vocês consideram que seria de interesse de outras pessoas que não conhecem vocês.

Organizem essas informações em forma de texto, pensando nos relatos que cada um vai fazer e nas imagens que serão associadas a eles.

 

Etapa 2

Para produzir um vídeo, é preciso primeiro escrever o roteiro. Ele deve prever todas as etapas da gravação, incluindo o texto que servirá de base para o que será falado: ordem da apresentação dos relatos; local em que o vídeo será gravado; relato escrito individualmente, mas revisado pelo grupo, para dar unidade ao vídeo e garantir duração semelhante em todos os relatos.

 

Etapa 3

Depois que o roteiro estiver pronto, é hora de gravar o vídeo. Vocês podem usar qualquer recurso disponível: celular, câmera digital, webcam ou câmera do computador. O que importa é o conteúdo!

Gravem um vídeo em que vocês mesmos falem o texto que escreveram, enquanto a câmera mostra as imagens que representam o que está sendo narrado. Procurem limitar o vídeo final ao tempo máximo de 10 minutos.

 

Etapa 4

Os vídeos serão exibidos em uma data previamente combinada com o professor. Se a escola tiver um local adequado, é interessante compartilhar essa produção com mais pessoas, convidando-as para assistirem aos videorrelatos.

 

Etapa 5

Após a exibição, em uma roda de conversa, os grupos vão analisar como foi a realização do trabalho.

Algumas questões podem auxiliar nessa avaliação:

·   No geral, a realização da atividade foi bem-sucedida ou alguma coisa prejudicou o trabalho? Expliquem.

·   Que procedimentos devem ser adotados para que os problemas levantados não ocorram mais?

·   Os grupos adotaram uma atitude respeitosa no momento da exibição dos videorrelatos?

·   Quais foram os pontos fortes e os pontos fracos na percepção de quem assistiu aos vídeos?

·   Quais aspectos do trabalho foram relevantes para você?

 

 >> Para aprofundar o conhecimento

1. (Fuvest-SP)

O feminismo negro não é uma luta meramente identitária, até porque branquitude e masculinidade também são identidades. Pensar feminismos negros é pensar projetos democráticos. Hoje afirmo isso com muita tranquilidade, mas minha experiência de vida foi marcada pelo incômodo de uma incompreensão fundamental. Não que eu buscasse respostas para tudo. Na maior parte da minha infância e adolescência, não tinha consciência de mim. Não sabia por que sentia vergonha de levantar a mão quando a professora fazia uma pergunta já supondo que eu não saberia a resposta. Por que eu ficava isolada na hora do recreio. Por que os meninos diziam na minha cara que não queriam formar par com a “neguinha” na festa junina. Eu me sentia estranha e inadequada, e, na maioria das vezes, fazia as coisas no automático, me esforçando para não ser notada.

Djamila Ribeiro, Quem tem medo do feminismo negro?

 

O trecho que melhor define a “incompreensão fundamental” referida pela autora é:

a) “não que eu buscasse respostas para tudo”.

b) “não tinha consciência de mim”.

c) “Por que eu ficava isolada na hora do recreio”.

d) “me esforçando para não ser notada”.

e) “sentia vergonha de levantar a mão”.

 

2. (ENEM)

Essa lua enlutada, esse desassossego

A convulsão de dentro, ilharga

Dentro da solidão, corpo morrendo

Tudo isso te devo. E eram tão vastas

As coisas planejadas, navios,

Muralhas de marfim, palavras largas

Consentimento sempre. E seria dezembro.

Um cavalo de jade sob as águas

Dupla transparência, fio suspenso

Todas essas coisas na ponta dos teus dedos

E tudo se desfez no pórtico do tempo

Em lívido silêncio. Umas manhãs de vidro

Vento, a alma esvaziada, um sol que não vejo

Também isso te devo.

HILST, H. Júbilo, memória, noviciado da paixão. São Paulo: Cia. Das Letras, 2018.

 

No poema, o eu lírico faz um inventário de estados passados espelhados no presente. Nesse processo, aflora o

a) cuidado em apagar da memória os restos do amor.

b) amadurecimento revestido de ironia e desapego.

c) mosaico de alegrias formado seletivamente.

d) desejo reprimido convertido em delírio.

e) arrependimento dos erros cometidos.

 

3. (Unicamp-SP)

“... Nas ruas e casas comerciais já se vê as faixas indicando os nomes dos futuros deputados. Alguns nomes já são conhecidos. São reincidentes que já foram preteridos nas urnas. Mas o povo não está interessado nas eleições, que é o cavalo de Troia que aparece de quatro em quatro anos.”

Carolina Maria de Jesus. Quarto de despejo. São Paulo: Ática, 2014. p.43.

 

O trecho anterior faz parte das considerações políticas que aparecem repetidamente em “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus. Considerando o conjunto dessas observações,

indique a alternativa que resume de modo adequado a posição da autora sobre a lógica política das eleições.

a) Por meio das eleições, políticos de determinados partidos acabam se perpetuando no exercício do poder.

b) Os políticos se aproximam do povo e, depois das eleições, se esquecem dos compromissos assumidos.

c) Os políticos preteridos são aqueles que acabam vencendo as eleições, por força de sua persistência.

d) Graças ao desinteresse do povo, os políticos se apropriam do Estado, contrariando a própria democracia.

 

4. (Unicamp-SP)

[...]

Eu tenho uma ideia.

Eu não tenho a menor ideia.

Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício.

Memórias de Copacabana. Santa Clara às 3h00 da tarde.

Autobiografia. Não, biografia.

Mulher.

Papai Noel e os marcianos.

Billy the Kid versus Drácula.

Drácula versus Billy the Kid.

Muito sentimental.

Agora pouco sentimental.

Pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que o seu

Amor de ontem.

Apresenta a jazz-band.

Não, toca blues com ela.

Esta é a minha vida.

Atravessa a ponte.

[...]

Ana Cristina César. A teus pés. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 9.

 

Esse trecho do poema de abertura de A teus pés, de Ana Cristina César,

a) expressa nostalgia do passado, visto que mobiliza referências à cultura pop dos anos de 1970.

b) requisita a participação do leitor, já que as referências biográficas são fragmentárias.

c) exclui a dimensão biográfica, pois se refere a personagens imaginários e de ficção.

d) tematiza a descrença na poesia, uma vez que a poeta se contradiz continuamente.

 








 Analisando o texto – Hilda Hilst

1. a) O tom imperativo predomina no trecho, como em “[...] você vai dar continuidade ao assunto ‘frieira’. Diga que você já fez isso e não deu resultado” e “Fale agora do sofrimento de toda a espécie animal”. O uso das formas verbais imperativas tem a função de criar um tom de aconselhamento: o narrador se dirige ao leitor para orientar sobre como se comportar em um jantar chique: “Se você for a um jantar chique e perguntarem de repente o porquê do teu mutismo e soturnez, diga que é por causa de uma frieira que te aborrece há dias”.

b) O narrador dá conselhos que não correspondem ao que o senso comum consideraria “boas maneiras” de comportamento, conforme insinua o título. Dessa forma, a autora cria um discurso irreverente, que busca criticar (e satirizar ironicamente) um modelo de comportamento social.

1. A expressão era utilizada para se referir às mulheres cujo comportamento rompia com o padrão tradicional da época.

2. Algumas revistas de grande circulação na época, como A Cigarra, continuaram defendendo pautas contrárias à emancipação feminina, principalmente por entenderem como absurda a ideia de igualdade de gênero. Contudo, principalmente a partir de 1940, algumas seções começaram a dar espaço a discussões sobre igualdade política, condições de trabalho, dentre outros assuntos, o que favoreceu a mobilização e luta pelos direitos das mulheres na sociedade brasileira.

Analisando o texto – Conceição Evaristo

1. a) O título do livro é Poemas de recordação e outros movimentos. O título antecipa para o leitor uma temática comum presente nos textos: a memória.

b) Dentre os “dilemas identitários” contidos no poema, pode-se apontar a introdução do poema, em que o rosário, tipo de terço comumente usado em cultos cristãos, é associado a cantos em homenagem a entidades de religiões africanas (“eu canto Mamãe Oxum”) e a orações de cultos católicos, como O Padre Nosso e a Ave Maria. Essa associação está relacionada à reflexão que a autora faz sobre sua identidade: brasileira descendente de africanos. O preconceito com o negro também se manifesta em todo o poema, como nas cenas que fazem referência à coroação de Nossa Senhora ou aos calos adquiridos no duro trabalho diário.

2. São diversas as possibilidades de associação. No trecho do diário lido, o relato mostra que as pessoas que viviam na mesma comunidade de Carolina a consideravam estranha, diferente, por gostar de escrever, por expor suas opiniões, etc. Outra relação possível é com a época em que os livros da escritora foram publicados: na época, Carolina vivenciou momentos de prestígio e preconceito, por sua origem humilde e pouca escolaridade.

 

 

Analisando o texto – Mulheres negras

1. a) O discurso hegemônico remete à ideia de que homens e mulheres negros são inferiores. Essa perspectiva gerou exclusão e discriminação social histórica.

b) Em todos os depoimentos, pode-se observar o discurso de defesa e valorização das tradições culturais dos afrodescendentes, assim como a intenção de fazer da literatura um instrumento de denúncia das desigualdades sociais que os marginalizaram. Um exemplo é a fala da escritora Meimei Bastos, que destaca a importância de sua ancestralidade e a intenção de afirmação de seu lugar social por meio da literatura que escreve: “[...] porque foi um campo negado aos meus ancestrais, aos que vieram antes de mim, a conquista deles se deu por muita luta, eu não posso negar esse espaço, eu não posso negar esse lugar.”

2. Segundo a escritora indígena, dar espaço para essas diversas vozes femininas favorece a identificação consciente das injustiças e violências que as mulheres indígenas sofreram ao longo do processo de colonização, que desrespeitou suas ancestralidades.

3. A literatura tem o poder de provocar empatia no leitor, o que favorece uma mudança de atitude em relação às temáticas que se focaliza.

 

 

>> Para aprofundar o conhecimento

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