21 outubro 2022

O DILEMA DA ADAPTAÇÃO

 

Cinema tem cada vez mais levado às telas filmes inspirados em livros, mas o caminho não é fácil

Cláudia Nina

 

                A melhor parte de O ladrão de orquídeas (Rocco, 300 páginas), da jornalista americana Susan Orlean não está nas páginas que escreveu, mas na leitura paralela que o roteirista Charlie Kaufman faz da obra em Adaptação. A ficção superou o texto jornalístico, originalmente escrito em forma de ensaio para a revista The New Yorker. Ao bagunçar o coreto da realidade, Kaufman faz uma pensata sobre o próprio exercício de se adaptar um livro (aparentemente inadaptável) para as telas. O resultado é a imaginação cinematográfica transcendendo o realismo da reportagem em um dos filmes mais criativos da temporada.

            O que mais surpreende na história é justamente o fato de levar para o cinema uma reflexão sobre um tema freqüente: as adaptações são uma tendência cada vez mais forte em Rollywood. Como se pôde ver na cerimônia de entrega do Oscar deste ano, alguns dos filmes mais badalados, como As horas, O senhor dos anéis, Gangues de Nova York e O pianista foram inspirados em livros. Hoje, os estúdios têm até scouts – profissionais responsáveis por garimpar nas editoras americanas best-sellers que ainda serão publicados – para a descobrir livros potencialmente filmáveis. Com isso, uma obra pode chegar ao cinema simultaneamente à publicação do livro que lhe deu origem. Uma dobradinha chamada de tie-in, ou seja, lançamento “amarrado” que eleva à extratosfera os lucros de ambos: filme e livro. Autores como Jonh Grisham, por exemplo, chegam a ganhar US$ 1 milhão só para ceder o direito de suas obras à adaptação. Embora com cifras bem mais modestas, no Brasil, a literatura também tem freqüentemente alimentado o cinema com sucesso. Prova disso é Cidade de Deus, de Paulo Lins; O invasor, de Marçal Aquino, que também assina o roteiro para as telas; e Carandiru, de Bráuzio Varela, com estréia prevista para o mês que vem.
            O ladrão de orquídeas é um mergulho real da jornalista, em pessoa, nos pântanos lamacentos da Flórida à procura de um caçador de orquídeas que espera virar milionário clonando em laboratório a selvagem orquídea-fantasma. Especialista em chafurdar o cotidiano em busca de tipos raros, como um rei africano disfarçado de taxista em Nova York, personagem do livro The bull fighter checks her makeup, Susan fez sua escola literária na cartilha que ensina que a realidade é mais extraordinária do que a ficção. Ainda mais badalada depois do sucesso do filme, a jornalista costuma viajar o país com suas lectures, ensinando as lições básicas de um jornalismo literário talhado segundo as regras áureas da The New Yorker: evitar enfeites desnecessários em prol do que os americanos chamam de “elegant variation”e primar pela objetividade, ou seja, iniciar a conversa logo nos primeiros parágrafos para não desanimar o leitor.

            O livro é, portanto, um mundo de informações. Muitos fatos inundando reflexões ralas, pretensiosamente complexas. Aprende-se quase tudo sobre orquídeas, desde a origem do nome, do latim: orchis significa testículo, daí o fato de, por muito tempo, as pessoas terem acreditado que as orquídeas nascessem do sêmen respingado de animais em cópula. Foi com esse texto, responsável, técnico, enciclopédico, que o roteirista Charlie Kaufman se debateu ao ler O ladrão de orquídeas em sua ingrata tarefa de transportá-lo para as te1as.

            Como matéria-prima, ele tinha uma história real e um personagem tão interessante que parecia fictício, o tal ladrão do título, chamado John Laroche. Mas como fazer a travessia do livro para as telas? Por onde entrar no texto, até onde ir, o que cortar, acrescentar ou inventar?

            Na angústia de Charlie Kaufman, transformado por ele mesmo em personagem do próprio filme que escreve, está representado do o grande conflito das adaptações: em frente à máquina, o papel em branco, ele pensa nas muitas possibilidades e nos inúmeros caminhos a seguir. O que fazer?

            A solução foi inventar. Usar os dados como simples base de apoio para uma adaptação livre levada a seu limite máximo a ponto de transformar a própria autora em personagem, ou seja, em “vítima” da ficção. Uma desfiguração total da história: Susan vira maconheira, tem um caso com John Laroche e ainda se revela capaz de matar. Dá para imaginar a cara de espanto da jornalista ao ler o roteiro pela primeira vez e constatar o que havia sido feito de sua reportagem.

            Susan chegou a implorar para que seu nome real não fosse divulgado. Alegava que estava se expondo demais e que sua credibilidade iria por água abaixo. O diretor Spike Jonze, o mesmo de Quero ser John Malkovich, conseguiu convencê-la, argumentando que todos ali estavam se expondo, principalinente o próprio Charlie Kaufman, apresentado nas telas como um homem transtornado, tímido ao extremo, incapaz de se envolver com mulher alguma e que passava as noites de insônia se masturbando.

            Além do filme de Kaufman, outro exemplo pouco convencional de adaptação está no filme de Martin Scorcese, Gangues de Nova York, inspirado no livro homônimo de Herbert Asbury reportagem 100% jornalística sobre o processo de formação do crime organizado na cidade, publicada em 1927. O melhor do filme está nos surpreendentes dados históricos levantados pelo jornalista e que serviram de base para o roteiro. O filme tenta reproduzir a história misturando uma love story com chocantes banhos de sangue. Embora o resultado tenha sido celebrado por boa parte da crítica, fica a dúvida se, entre os muitos caminhos possíveis a escolher – o dilema de Charlie Kaufman –  Scorcese poderia ter optado por mostrar algo mais além da carnificina.

            São várias as formas de se levar às telas uma obra literária. O caminho menos arenoso é o da adaptação literal, como a trilogia O senhor dos anéis e O pianista. Este último, vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado, concorreu com Um grande garoto, filmado a partir o romance de Nick Hornby, entre outros.

            Mas o caminho tradicional nem sempre significa facilidade. As horas, do diretor Stephen Daldry, por exemplo, é uma adaptação ao pé da letra. Quase tudo igualzinho como acontece no livro homônimo de Michael Cunninghan (Companhia das Letras, 179 páginas). Mas a obra de origem é um grande desafio para qualquer roteirista. Narrativa complexa, inspirada no estilo do célebre modernismo inglês, contada quase o tempo todo em forma de fluxo da consciência, reproduzindo os mais diminutos pensamentos dos personagens, o livro parece, a princípio, inadaptável. O resultado que se vê nas telas, porém, é surpreendente.

No romance, o que mais chama a atenção é a habilidade de Cunninghan em tomar emprestado a voz de Virginia Woolf que, personagem, assombra toda a narrativa. Difícil desatar o nó entre a escrita do jovem autor americano e a autora de Orlando.

As horas, antes de tudo, é um apurado trabalho de pesquisa biográfica sobre Virginia Woolf. Dados históricos foram articulados numa ficção que fala da vida de três mulheres em épocas distintas. Uma delas, Mrs. Woolf. O fio condutor é o romance que a própria está escrevendo, em 1923, Mrs. Dalloway. Tudo se passa em 24 horas – assim  como em Ullysses, de Joyce; um único dia em que decisões cruciais são tomadas na vida das três personagens.

Como fazer para captar em imagens a sutileza das descrições e os sentimentos contidos em As horas? É claro que uma acertada seleção de atores ajuda, assim como o auxílio de figurinos, cenários e maquiadores. O desafio maior, porém, foi conseguir transpor para as telas, com tanta precisão, o clima da obra, principalmente em se tratando de um livro em que o pensamento é mais importante do que a ação, travada quase toda na mente dos personagens. Um texto bem parecido com o de Clarice Lispector, que sempre teve sua obra comparada à de Woolf. Impossível não se lembrar, ao ler Mrs. Dalloway (relançado pela Nova Fronteira como “A verdadeira história por trás de As horas”), de algumas obras da autora brasileira.

            Uma das coisas mais interessantes em adaptações é justamente esta: um bom filme atrai atenção para livros e autores. Quando o diálogo entre as artes se amplia, todo mundo ganha. Principalmente a própria literatura.                               

                                           (JB Idéias p.1-2 29/03/2003)





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