Cinema tem cada vez mais levado às telas filmes
inspirados em livros, mas o caminho não é fácil
Cláudia Nina
A melhor parte de O ladrão de orquídeas (Rocco,
300 páginas), da jornalista americana Susan Orlean não está nas páginas que
escreveu, mas na leitura paralela que o roteirista Charlie Kaufman faz da obra
em Adaptação. A ficção superou o texto jornalístico, originalmente
escrito em forma de ensaio para a revista The New Yorker. Ao bagunçar o
coreto da realidade, Kaufman faz uma pensata sobre o próprio exercício de se
adaptar um livro (aparentemente inadaptável) para as telas. O resultado é a
imaginação cinematográfica transcendendo o realismo da reportagem em um dos
filmes mais criativos da temporada.
O
que mais surpreende na história é justamente o fato de levar para o cinema uma
reflexão sobre um tema freqüente: as adaptações são uma tendência cada vez mais
forte em Rollywood. Como se pôde ver na cerimônia de entrega do Oscar deste
ano, alguns dos filmes mais badalados, como As horas, O senhor dos anéis,
Gangues de Nova York e O pianista foram inspirados em livros. Hoje,
os estúdios têm até scouts – profissionais responsáveis por garimpar nas
editoras americanas best-sellers que ainda serão publicados – para a
descobrir livros potencialmente filmáveis. Com isso, uma obra pode chegar ao
cinema simultaneamente à publicação do livro que lhe deu origem. Uma dobradinha
chamada de tie-in, ou seja, lançamento “amarrado” que eleva à
extratosfera os lucros de ambos: filme e livro. Autores como Jonh Grisham, por
exemplo, chegam a ganhar US$ 1 milhão só para ceder o direito de suas obras à
adaptação. Embora com cifras bem mais modestas, no Brasil, a literatura também
tem freqüentemente alimentado o cinema com sucesso. Prova disso é Cidade de
Deus, de Paulo Lins; O invasor, de Marçal Aquino, que também assina
o roteiro para as telas; e Carandiru, de Bráuzio Varela, com estréia
prevista para o mês que vem.
O
ladrão de orquídeas é um mergulho real da jornalista, em pessoa, nos
pântanos lamacentos da Flórida à procura de um caçador de orquídeas que espera
virar milionário clonando em laboratório a selvagem orquídea-fantasma.
Especialista em chafurdar o cotidiano em busca de tipos raros, como um rei africano
disfarçado de taxista em Nova York, personagem do livro The bull fighter
checks her makeup, Susan fez sua escola literária na cartilha que ensina
que a realidade é mais extraordinária do que a ficção. Ainda mais badalada
depois do sucesso do filme, a jornalista costuma viajar o país com suas lectures,
ensinando as lições básicas de um jornalismo literário talhado segundo as
regras áureas da The New Yorker:
evitar enfeites desnecessários em prol do que os americanos chamam
de “elegant variation”e primar pela
objetividade, ou seja, iniciar a conversa logo nos primeiros parágrafos
para não desanimar o leitor.
O
livro é, portanto, um mundo de informações. Muitos fatos inundando
reflexões ralas, pretensiosamente complexas. Aprende-se quase tudo sobre orquídeas,
desde a origem do nome, do latim: orchis significa testículo, daí o fato
de, por muito tempo, as pessoas terem acreditado que as orquídeas nascessem do
sêmen respingado de animais em cópula. Foi com esse texto, responsável,
técnico, enciclopédico, que o roteirista Charlie Kaufman se debateu ao ler O
ladrão de orquídeas em sua ingrata tarefa de transportá-lo para as te1as.
Como
matéria-prima, ele tinha uma história real e um personagem tão interessante que
parecia fictício, o tal ladrão do título, chamado John Laroche. Mas como fazer
a travessia do livro para as telas? Por onde entrar no texto, até onde ir, o
que cortar, acrescentar ou inventar?
Na
angústia de Charlie Kaufman, transformado por ele mesmo em personagem do
próprio filme que escreve, está representado do o grande conflito das
adaptações: em frente à máquina, o papel em branco, ele pensa nas muitas
possibilidades e nos inúmeros caminhos a
seguir. O que fazer?
A
solução foi inventar. Usar os dados como simples base de apoio para uma
adaptação livre levada a seu limite máximo a ponto de transformar a própria
autora em personagem, ou seja, em “vítima” da ficção. Uma desfiguração total da
história: Susan vira maconheira, tem um caso com John Laroche e ainda se revela
capaz de matar. Dá para imaginar a cara de espanto da jornalista ao ler o
roteiro pela primeira vez e constatar o que havia sido feito de sua reportagem.
Susan
chegou a implorar para que seu nome real não fosse divulgado. Alegava que estava
se expondo demais e que sua credibilidade iria por água abaixo. O diretor Spike
Jonze, o mesmo de Quero ser John Malkovich, conseguiu convencê-la,
argumentando que todos ali estavam se expondo, principalinente o próprio
Charlie Kaufman, apresentado nas telas como um homem transtornado, tímido ao
extremo, incapaz de se envolver com mulher alguma e que passava as noites de
insônia se masturbando.
Além
do filme de Kaufman, outro exemplo pouco convencional de adaptação está no
filme de Martin Scorcese, Gangues de Nova York, inspirado no livro
homônimo de Herbert Asbury reportagem 100% jornalística sobre o processo de
formação do crime organizado na cidade, publicada em 1927. O melhor do filme
está nos surpreendentes dados históricos levantados pelo jornalista e que
serviram de base para o roteiro. O filme tenta reproduzir a história misturando
uma love story com chocantes banhos de sangue. Embora o resultado tenha
sido celebrado por boa parte da crítica, fica a dúvida se, entre os muitos
caminhos possíveis a escolher – o dilema de Charlie Kaufman – Scorcese poderia ter optado por mostrar algo
mais além da carnificina.
São
várias as formas de se levar às telas uma
obra literária. O caminho menos arenoso é o da adaptação literal, como a
trilogia O senhor dos anéis e O pianista. Este último, vencedor
do Oscar de melhor roteiro adaptado, concorreu com Um grande garoto, filmado
a partir o romance de Nick Hornby, entre outros.
Mas
o caminho tradicional nem sempre significa facilidade. As horas, do
diretor Stephen Daldry, por exemplo, é uma adaptação ao pé da letra. Quase tudo
igualzinho como acontece no livro homônimo de Michael Cunninghan (Companhia das
Letras, 179 páginas). Mas a obra de origem é um grande desafio para qualquer
roteirista. Narrativa complexa, inspirada no estilo do célebre modernismo
inglês, contada quase o tempo todo em forma de fluxo da consciência,
reproduzindo os mais diminutos pensamentos dos personagens, o livro parece, a
princípio, inadaptável. O resultado que se vê nas telas, porém, é surpreendente.
No romance, o que mais chama
a atenção é a habilidade de Cunninghan
em tomar emprestado a voz de Virginia Woolf que, personagem, assombra toda a
narrativa. Difícil desatar o nó entre a escrita do jovem autor americano e a
autora de Orlando.
As horas,
antes de tudo, é
um apurado trabalho de pesquisa biográfica sobre Virginia Woolf. Dados
históricos foram articulados numa ficção que fala da vida de três mulheres em
épocas distintas. Uma delas, Mrs. Woolf. O fio condutor é o romance que a
própria está escrevendo, em 1923, Mrs. Dalloway. Tudo se passa em 24
horas – assim como em Ullysses, de
Joyce; um único dia em que decisões cruciais são tomadas na vida das três
personagens.
Como fazer para captar em imagens a sutileza das descrições e os
sentimentos contidos em As horas?
É claro que uma acertada seleção de atores ajuda, assim como o
auxílio de figurinos, cenários e maquiadores. O desafio maior, porém, foi
conseguir transpor para as telas, com tanta precisão, o clima da obra,
principalmente em se tratando de um livro em que o pensamento é mais importante
do que a ação, travada quase toda na mente dos personagens. Um texto bem parecido
com o de Clarice Lispector, que sempre teve sua obra comparada à de Woolf.
Impossível não se lembrar, ao ler
Mrs. Dalloway (relançado pela Nova Fronteira como “A verdadeira
história por trás de As horas”), de algumas obras da autora brasileira.
Uma
das coisas mais interessantes em adaptações é justamente esta: um bom filme
atrai atenção para livros e autores. Quando o diálogo entre as artes se amplia,
todo mundo ganha. Principalmente a própria literatura.
(JB
Idéias p.1-2 29/03/2003)