O romance A bicicleta que tinha bigodes conta a história
de uma criança que ambiciona ganhar uma bicicleta nova – com as cores da
bandeira de Angola – que o concurso da Rádio Nacional de Angola oferece a quem escrever
“a melhor estória”. Nessa obra infanto-juvenil do escritor angolano
Ondjaki, publicada em 2012, as crianças irão inventar suas histórias a partir das
suas das experiências de vida e com aqueles com quem vivem.
A capa preta com escritos
brancos remete à falta de luz, e os pontos azuis indicam um céu estrelado. O
menino com braços estendidos em direção à bicicleta que se encontra no céu
demonstra ao mesmo tempo o desejo da criança em obter o objeto desejado.
Não há uma divisão em
capítulos, no entanto, há folhas pretas que podem indicar esse tipo de
separação. No primeiro “capítulo” há o desenho do rádio, no qual o
menino-narrador ouve a notícia sobre o concurso. Um papagaio em um poleiro é o
segundo desenho e faz referência aos “jacós” JoãoPauloSegundo e
JoãoPauloTerceiro. Quando a falta de energia aparece na história, também não há
desenhos, apenas o fundo escuro.
Essas páginas e
ganham maior força ao observarmos o subtítulo do romance: “estórias sem luz elétrica”,
que aparece apenas na folha de rosto, que também é preta (o subtítulo não
aparece na capa ou na primeira folha).
Por morar na mesma
rua do Tio Rui, que “é escritor e inventa estórias e poemas” (ONDJAKI, 2012, p.
9), o garoto acredita ter boa chance de vencer. No entanto, diante da recusa do
tio em ajudá-lo (pois seria “batota”), ele pede ajuda aos amigos da sua rua.
Assim, junta-se com JorgeTemCalma e Isaura a procura de uma história que possa
vencer o concurso.
Tio Rui é referência
ao escritor “mais-velho” Manuel Rui, personagem sempre presente na escrita e na
vida de Ondjaki. Ele é respeitado por todos na rua por, é advogado e é a
representação da própria lei. É ele que consegue resolver o caso do atropelamento
do sapo Raúl pelo camarada Nove (que depois é rebatizado para Dez). Além disso,
também é escritor e tem bigodes mágicos de letrinhas.
Isaura é uma
personagem interessante, pois é mais observadora que o narrador- protagonista e
as outras crianças da rua. É ela, afinal, quem descobre a caixa mágica do tio
Rui. Ainda, segundo o narrador: “A Isaura tem sempre ideias complicadas”
(ONDJAKI, 2012, p.14).
Os nomes dos animais
de seu jardim não são de forma alguma inocentes. Um exemplo é o gato que se
chamava Tátecher, referência clara à Margareth Thatcher. A primeira-ministra
britânica ficou mundialmente conhecida como “Dama de Ferro”, por suas ações em oposição
aos sindicatos e pelos cortes em serviços sociais. Tátecher, após comer dois
papagaios, apelidados de JoãoPauloSegundo e JoãoPauloTerceiro, foi castrado (“lhe
cortaram os tímbalos”, ONDJAKI, 2012, p. 16). Ao tornar-se manso, o gato é
rebatizado para Gandhi, famoso líder indiano das manifestações pacíficas.
A bicicleta com bigodes
é citada em um sonho do menino no romance AvóDezanove
e o segredo do soviético, de 2009: “[...] até o TioRui que era escritor
passava numa bicicleta que tinha uns bigodes desenhados [...]” (p. 72). É
também nesse livro que é esclarecido o apelido da AvóDezanove: ela teve um dos
dedos do pé amputado devido ao diabetes (e por isso ficou com dezenove dedos). Dessa
forma, pode-se depreender que os dois livros têm o mesmo narrador-protagonista.
No romance A bicicleta que tinha bigodes, o contexto
histórico é importante para sua compreensão:
Após
uma longa e brutal guerra de libertação, Angola vê-se imersa na polarização da
Guerra Fria, e o partido único MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola)
governava com o apoio da União Soviética e de Cuba.
As revoluções
africanas dos países de língua portuguesa têm em comum o fato de ocorrerem ao
mesmo tempo que a formação do Estado-nação. Isto é, o movimento pretendia, além
da libertação das amarras portuguesas, conscientizar o povo da formação de uma
nação unida e indivisível. Devido à grande variedade de etnias locais,
dificilmente o indivíduo considerava-se angolano, mas quimbundo, ovimbundo,
lunda ou bakongo, entre tantos outros povos. As fronteiras artificiais criadas
pelos colonizadores independente dos grupos locais dificultaram ainda mais o
sentimento de nacionalismo. Unir diversos povos em uma única nação era um dos
objetivos do MPLA.
A
geração anterior a de Ondjaki foi a primeira a escrever literatura de raiz
verdadeiramente angolana. A geração anterior a de Ondjaki viveu a Luta de
Libertação da dominação portuguesa e engloba José Luandino Vieira, Pepetela,
Agostinho Neto, Viriato da Cruz, entre tantos outros.
Após a saída dos
colonos portugueses do território angolano, aumentou a dificuldade em manter ou
consertar as instalações elétricas e de esgoto. Por isso, a falta de água e luz
eram constantes em todo o país. Em A
bicicleta que tinha bigodes, o questionamento sobre as relações de poder e
sobre a qualidade da gestão de recursos pelos novos líderes angolanos é
extremamente sutil e está relacionada ao problema da falta de luz.
É
a partir da visão infantil que Ondjaki acaba por apresentar Luanda ao seu
leitor. A cidade certamente tem limitações, no entanto, seus habitantes acabam por
contorná-las e até mesmo tirar proveito delas.
Apesar de escrever em
língua portuguesa, os vocábulos, as expressões e as construções são
fundamentalmente angolanas. Ondjaki, ainda na orelha do livro, ressalta: “nossa
língua toda desportuguesa”. Há a tentativa de maior veracidade com a utilização
de palavras escritas fora da norma padrão. Estas, entretanto, vêm entre aspas,
demonstrando que o verdadeiro narrador tem consciência disso. O garoto
decide-se por escrever uma carta para o presidente, que está na orelha do livro. As palavras escritas que
não correspondem à ortografia portuguesa padrão estão todas circuladas, tais
como: “enjenheiro”, “quizer” e “concursu” (ONDJAKI, 2012). Apesar de a escrita assemelhar-se
à infantil, a consciência desses erros novamente evidencia o narrador-criança.
ADAPTADO
DE: Fernandes, Cristina Spanopoulos. As imagens da infância e “A bicicleta que
tinha bigodes”. Revista África e Africanidades - Ano 8 – n. 20, jul. 2015.
Disponível em: https://africaeafricanidades.com.br/documentos/004020072015.pdff