12 julho 2025

A BICICLETA QUE TINHA BIGODES: INTRODUÇÃO À OBRA

O romance A bicicleta que tinha bigodes conta a história de uma criança que ambiciona ganhar uma bicicleta nova – com as cores da bandeira de Angola – que o concurso da Rádio Nacional de Angola oferece a quem escrever “a melhor estória”. Nessa  obra infanto-juvenil do escritor angolano Ondjaki, publicada em 2012, as crianças irão inventar suas histórias a partir das suas das experiências de vida e com aqueles com quem vivem.

A capa preta com escritos brancos remete à falta de luz, e os pontos azuis indicam um céu estrelado. O menino com braços estendidos em direção à bicicleta que se encontra no céu demonstra ao mesmo tempo o desejo da criança em obter o objeto desejado.

Não há uma divisão em capítulos, no entanto, há folhas pretas que podem indicar esse tipo de separação. No primeiro “capítulo” há o desenho do rádio, no qual o menino-narrador ouve a notícia sobre o concurso. Um papagaio em um poleiro é o segundo desenho e faz referência aos “jacós” JoãoPauloSegundo e JoãoPauloTerceiro. Quando a falta de energia aparece na história, também não há desenhos, apenas o fundo escuro.

Essas páginas e ganham maior força ao observarmos o subtítulo do romance: “estórias sem luz elétrica”, que aparece apenas na folha de rosto, que também é preta (o subtítulo não aparece na capa ou na primeira folha).

Por morar na mesma rua do Tio Rui, que “é escritor e inventa estórias e poemas” (ONDJAKI, 2012, p. 9), o garoto acredita ter boa chance de vencer. No entanto, diante da recusa do tio em ajudá-lo (pois seria “batota”), ele pede ajuda aos amigos da sua rua. Assim, junta-se com JorgeTemCalma e Isaura a procura de uma história que possa vencer o concurso.

Tio Rui é referência ao escritor “mais-velho” Manuel Rui, personagem sempre presente na escrita e na vida de Ondjaki. Ele é respeitado por todos na rua por, é advogado e é a representação da própria lei. É ele que consegue resolver o caso do atropelamento do sapo Raúl pelo camarada Nove (que depois é rebatizado para Dez). Além disso, também é escritor e tem bigodes mágicos de letrinhas.

Isaura é uma personagem interessante, pois é mais observadora que o narrador- protagonista e as outras crianças da rua. É ela, afinal, quem descobre a caixa mágica do tio Rui. Ainda, segundo o narrador: “A Isaura tem sempre ideias complicadas” (ONDJAKI, 2012, p.14).

Os nomes dos animais de seu jardim não são de forma alguma inocentes. Um exemplo é o gato que se chamava Tátecher, referência clara à Margareth Thatcher. A primeira-ministra britânica ficou mundialmente conhecida como “Dama de Ferro”, por suas ações em oposição aos sindicatos e pelos cortes em serviços sociais. Tátecher, após comer dois papagaios, apelidados de JoãoPauloSegundo e JoãoPauloTerceiro, foi castrado (“lhe cortaram os tímbalos”, ONDJAKI, 2012, p. 16). Ao tornar-se manso, o gato é rebatizado para Gandhi, famoso líder indiano das manifestações pacíficas.

A bicicleta com bigodes é citada em um sonho do menino no romance AvóDezanove e o segredo do soviético, de 2009: “[...] até o TioRui que era escritor passava numa bicicleta que tinha uns bigodes desenhados [...]” (p. 72). É também nesse livro que é esclarecido o apelido da AvóDezanove: ela teve um dos dedos do pé amputado devido ao diabetes (e por isso ficou com dezenove dedos). Dessa forma, pode-se depreender que os dois livros têm o mesmo narrador-protagonista.

No romance A bicicleta que tinha bigodes, o contexto histórico é importante para sua compreensão:

            Após uma longa e brutal guerra de libertação, Angola vê-se imersa na polarização da Guerra Fria, e o partido único MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) governava com o apoio da União Soviética e de Cuba.

As revoluções africanas dos países de língua portuguesa têm em comum o fato de ocorrerem ao mesmo tempo que a formação do Estado-nação. Isto é, o movimento pretendia, além da libertação das amarras portuguesas, conscientizar o povo da formação de uma nação unida e indivisível. Devido à grande variedade de etnias locais, dificilmente o indivíduo considerava-se angolano, mas quimbundo, ovimbundo, lunda ou bakongo, entre tantos outros povos. As fronteiras artificiais criadas pelos colonizadores independente dos grupos locais dificultaram ainda mais o sentimento de nacionalismo. Unir diversos povos em uma única nação era um dos objetivos do MPLA.

            A geração anterior a de Ondjaki foi a primeira a escrever literatura de raiz verdadeiramente angolana. A geração anterior a de Ondjaki viveu a Luta de Libertação da dominação portuguesa e engloba José Luandino Vieira, Pepetela, Agostinho Neto, Viriato da Cruz, entre tantos outros.

Após a saída dos colonos portugueses do território angolano, aumentou a dificuldade em manter ou consertar as instalações elétricas e de esgoto. Por isso, a falta de água e luz eram constantes em todo o país. Em A bicicleta que tinha bigodes, o questionamento sobre as relações de poder e sobre a qualidade da gestão de recursos pelos novos líderes angolanos é extremamente sutil e está relacionada ao problema da falta de luz.

            É a partir da visão infantil que Ondjaki acaba por apresentar Luanda ao seu leitor. A cidade certamente tem limitações, no entanto, seus habitantes acabam por contorná-las e até mesmo tirar proveito delas.

Apesar de escrever em língua portuguesa, os vocábulos, as expressões e as construções são fundamentalmente angolanas. Ondjaki, ainda na orelha do livro, ressalta: “nossa língua toda desportuguesa”. Há a tentativa de maior veracidade com a utilização de palavras escritas fora da norma padrão. Estas, entretanto, vêm entre aspas, demonstrando que o verdadeiro narrador tem consciência disso. O garoto decide-se por escrever uma carta para o presidente, que está  na orelha do livro. As palavras escritas que não correspondem à ortografia portuguesa padrão estão todas circuladas, tais como: “enjenheiro”, “quizer” e “concursu” (ONDJAKI, 2012). Apesar de a escrita assemelhar-se à infantil, a consciência desses erros novamente evidencia o narrador-criança.









ADAPTADO DE: Fernandes, Cristina Spanopoulos. As imagens da infância e “A bicicleta que tinha bigodes”. Revista África e Africanidades - Ano 8 – n. 20, jul. 2015. Disponível em: https://africaeafricanidades.com.br/documentos/004020072015.pdff


A BICICLETA QUE TINHA BIGODES: INTRODUÇÃO À OBRA

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