Affonso Romano de Sant'Anna
Quatro
pessoas, num mesmo dia, me dizem que vão fazer 30 anos. E me anunciam isto com
uma certa gravidade. Nenhuma está dizendo: vou tomar um sorvete na esquina, ou:
vou ali comprar um jornal. Na verdade estão proclamando: vou fazer 30 anos e,
por favor, prestem atenção, quero cumplicidade, porque estou no limiar de
alguma coisa grave.
Antes dos 30 as coisas são
diferentes. Claro que há algumas datas significativas, mas fazer 7, 14, 18 ou
21 é ir numa escalada montanha acima, enquanto fazer 30 anos é chegar no
primeiro grande patamar de onde se pode mais agudamente descortinar.
Fazer 40, 50 ou 60 é um outro ritual,
uma outra crônica, e um dia eu chego lá. Mas fazer 30 anos é mais que um rito
de passagem, é um rito de iniciação, um ato realmente inaugural. Talvez haja
quem faça 30 anos aos 25, outros aos 45, e alguns, nunca. Sei que tem gente que
não fará jamais 30 anos. Não há como obrigá-los. Não sabem o que perdem os que
não querem celebrar os 30 anos. Fazer 30 anos é coisa fina, é começar a provar
do néctar dos deuses e descobrir que sabor tem a eternidade. O paladar, o tato,
o olfato, a visão e todos os sentidos estão começando a tirar prazeres
indizíveis das coisas. Fazer 30 anos, bem poderia dizer Clarice Lispector, é
cair em área sagrada.
Até os 30, me dizia um amigo, a gente
vai emitindo promissórias. A partir daí é hora de começar a pagar. Mas também
se poderia dizer: até essa idade fez-se o aprendizado básico. Cumpriu-se o
longo ciclo escolar, que parecia interminável, já se foi do primário ao
doutorado. A profissão já deve ter sido escolhida. Já se teve a primeira mesa
de trabalho, escritório ou negócio. Já se casou a primeira vez, já se teve o
primeiro filho. A vida já se inaugurou em fraldas, fotos, festas, viagens, todo
tipo de viagens, até das drogas já retornou quem tinha que retornar.
Quando alguém faz 30 anos, não creiam
que seja uma coisa fácil. Não é simplesmente, como num jogo de amarelinha,
pular da casa dos 29 para a dos 30 saltitantemente. Fazer 30 anos é cair numa
epifania. Fazer 30 anos é como ir à Europa pela primeira vez. Fazer 30 anos é
como o mineiro vê pela primeira vez o mar.
Um dia eu fiz 30 anos. Estava ali no
estrangeiro, estranho em toda a estranheza do ser, à beira-mar, na Califórnia.
Era um homem e seus trinta anos. Mais que isto: um homem e seus trinta amos. Um
homem e seus trinta corpos, como os anéis de um tronco, cheio de eus e nós,
arborizado, arborizando, ao sol e a sós.
Na verdade, fazer 30 anos não é para
qualquer um. Fazer 30 anos é, de repente, descobrir-se no tempo. Antes, vive-se
no espaço. Viver no espaço é mais fácil e deslizante. É mais corporal e
objetivo. Pode-se patinar e esquiar amplamente.
Mas fazer 30 anos é como sair do
espaço e penetrar no tempo. E penetrar no tempo é mister de grande
responsabilidade. É descobrir outra dimensão além dos dedos da mão. É como se
algo mais denso se tivesse criado sob a couraça da casca. Algo, no entanto,
mais tênue que uma membrana. Algo como um centro, às vezes móvel, é verdade,
mas um centro de dor colorido. Algo mais que uma nebulosa, algo assim pulsante
que se entreabrisse em sementes.
Aos 30 já se aprendeu os limites da
ilha, já se sabe de onde sopram os tufões e, como o náufrago que se salva, é
hora de se autocartografar. Já se sabe que um tempo em nós destila, que no
tempo nos deslocamos, que no tempo a gente se dilui e se dilema. Fazer 30 anos
é como uma pedra que já não precisa exibir preciosidade, porque já não cabe em
preços. É como a ave que canta, não para se denunciar, senão para amanhecer.
Fazer 30 anos é passar da reta à
curva. Fazer 30 anos é passar da quantidade à qualidade. Fazer 30 anos é passar
do espaço ao tempo. É quando se operam maravilhas como a um cego em Jericó.
Fazer 30 anos é mais do que chegar ao
primeiro grande patamar. É mais que poder olhar pra trás. Chegar aos 30 é hora
de se abismar. Por isto é necessário ter asas, e sobre o abismo voar.
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