Há livros que
denunciam idade. Ter lido Pearl S. Buck, A
Boa Terra, é um dos reveladores. Adorava os textos dela. Há uma cena na obra
que me marcou: o casal chinês está com seu recém-nascido no colo e observa,
embevecido, que o bebê é lindo, comentando em voz alta com a justa e merecida
vaidade de genitores. De repente, a consciência! Isso pode causar inveja nos
deuses, nos demônios, nos seres que estão por perto e odeiam a felicidade humana.
Mudam o tom e ressaltam como a criança é horrorosa, de fealdade única, para evitar
a inveja do mundo invisível.
Ter memória dos
livros da autora indica idade. Outro sinal: imaginar um mundo onde as coisas
não precisavam ser compartilhadas sempre e com todo mundo. Parece que existia
uma consciência de que há dados importantes para mim ou para a família, todavia
o universo seguirá seu rumo, indiferente à nossa comoção privada.
Olho
com estranheza a possibilidade de colorir de azul ou rosa o edifício mais alto
do mundo em Dubai, o Burj Khalifa. Outros pais jogam corante em um córrego para
que a cachoeira flua com a cor que dirá ao mundo o gênero do herdeiro. Vi um
avião passando sobre um Chá Revelação e defumando o céu com as cores que encerram a angústia cósmica mais pungente
de todas: menino ou menina? A imaginação corre solta, e a verba é ilimitada
aparentemente.
Não
sou censor de outras pessoas. A alegria genuína de um casal ao gerar vida é
algo bonito. Sempre é prudente saber que o júbilo se reduz ao casal e ao
círculo privado de uma parte, apenas uma parte, da família. A prima da cunhada
da vizinha da minha sogra seguirá sua vida feliz se o bebê vier XX ou XY. Todos
são livres para comemorar e compartilhar, sempre. Seria apenas prudente ter
consciência de que o gênero da criança muda algumas pequenas coisas na
decoração da minha residência, e só. O resto será o desafio enorme e prolongado
de ser responsável por uma vida.
O
que eu disse aqui vale para quase tudo e vale para mim. Publico conquistas nas
minhas mídias sociais. Lá é o espaço para aqueles que desejam acompanhar temas
profissionais ou pessoais. Os que não se interessam, a maioria da humanidade, podem
livremente evitar. Devem! Lancei mais um livro? Ganhei um prêmio? Fui eleito para
uma instituição de respeito? Tenho família pequena, meia dúzia de amigos...
informo-os, mas nem todos no “inner cirle” têm o mesmo interesse. É uma lição
permanente de humildade: mesmo entre as pessoas que me amam, nem todos estão com
vontade de comemorar o que é importante para mim. Alegram-se, alguns de forma genuína,
outros até mais do que eu, mas o mundo segue, solene, indiferente à minha dor e
à minha alegria. Mesmo quem me ama muito (e tenho pessoas que me amam muito)
não pode superar a barreira entre minha dor e a dor deveras sentida por outro
corpo. Faz tempo que acessei isso. Não se trata de dizer o óbvio, que eu não seja
o centro do universo. É algo denso: mesmo que eu estivesse no centro do
universo, minha alegria e meu desespero seriam meus. Eu sempre serei o único a
sentir a dor e a delícia de ser quem eu sou.
Comecei
redigindo sobre Chá Revelação, mas terminei abordando consciência solitária.
Para mim, foi um passo importante. Eu visitei tal pessoa no luto dela, mas ela
não me visitou no meu. Eu dei um presente bom de aniversário, mas ela se
esqueceu do meu. Eu, eu, eu... essa obsessão é fatal para a felicidade. Eu posso
fazer o que eu desejar, contudo cada pessoa seguirá seu caminho, enquanto o
mundo todo permanecerá onde está. Não é o sexo do meu herdeiro que não
interessa a mais ninguém, sou eu e tudo o que diz respeito a mim. É libertador parar
de buscar a aprovação da humanidade. Vivo uma lufada renovadora quando percebo
que estou só, mesmo tendo amigos e família. E, no meio de quem amo, há momentos
extraordinários de conexão, que me comovem. Passado o instante (uma faísca bonita),
os seres seguem seu rumo. Sim, eu posso tingir de roas o Oceano Atlântico para
gritar que minha primogênita será uma menina, entretanto muitos pensarão no meu
poder e no meu dinheiro. Depois, o mar volta ao tom natural, a menina cresce, o
silêncio do tempo se impõe e o gênero se dilui na água de Heráclito.
Toda alegria é
lícita, se respeitar a ética e o espaço alheio. Sofreríamos menos se parássemos
de exigir do mundo uma comunhão integral.
Talvez
todo Chá Revelação seja um chá de ocultação, pois produz o cenário impactante sobre
dados irrelevantes. Não é Schopenhauer. Não sou e nunca fui pessimista. Tenho a
consciência de Saramago ao comparar a esperança ao sal: não alimenta, mas dá
sabor ao pão. Sou livre para comemorar. Se eu encontrar outra pessoa que tenha
a mesma busca, sou feliz. Faça chás, revele tudo, comemore “mesversários”, publique
nas mídias sociais e grite ao mundo que você é feliz... Aceite apenas que o “eu
sou feliz” começa e volta sempre ao pronome de primeira pessoa no singular. O
resto, como diria Hamlet, é silêncio.